Memória de Cachoeiro - Jornal Fato
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Memória de Cachoeiro


 

O jornalista Ailton Weller, aqui no Espírito Santo de Fato, produziu três matérias culturais e especiais da melhor qualidade, abordando pessoas que cuidam às próprias custas, da memória da cidade. Segundo o jornalista - coberto de razões - "enquanto o poder público não investe, todo esse material (histórico) permanece sob o domínio desses personagens". Tais personagens particulares é gente desligada do governo local. Com carinho, trabalho e responsabilidade ocupam o espaço da administração pública, nesse mister, altamente incompetente, para não dizer ignorante, o que melhor lhe caberia.

 

Por razões pessoais, falo só de dois desses guardiões, pinçando nas matérias de Weller coisas que eles disseram melancólica e com justa revolta. E transcrevo só parte da revolta, vez que o espaço, aqui, é pequeno.

 

Diz Paulo Henrique Thiengo, guardião da memória e instrumentos da ferrovia que cortava Cachoeiro e de boa parte do Correio do Sul, impresso: - "A Casa da Memória, que serviu a seu propósito por curto período, já foi abrigo para repartição pública por várias administrações do município. Isso é uma lástima".

 

Sobre o Correio do Sul, diz o jornalista: - "O que restou do extinto jornal "Correio do Sul", lançado em 30 de junho de 1928, por Armando de Carvalho Braga e Jerônimo Braga (irmãos de Rubem e Newton Braga), está sob cuidados de Thiengo" e a "impressora (desmontada), clichês, tipos e cerca de 50 cadernos do jornal, cobrindo vários anos da história de Cachoeiro... deveriam estar cuidadosamente acondicionados e conservados, mas não existe local para isto, na cidade". "A inoperância do poder público, no sentido de criar espaços para abrigar acervos que preservem o patrimônio histórico e cultural de Cachoeiro, deve levar Thiengo a enviar à Associação Brasileira de Preservação Ferroviária - fora de Cachoeiro - todo material que ele recolheu durante décadas".

 

Já Gilson Moreira Leão, que preserva imagens em fita da cidade, "é responsável pela conservação de mais de 300 fitas em VHS e sistema digitalizado, com depoimentos de personalidades cachoeirenses e artistas que passaram pela cidade".

 

E continua Ailton: - "Sobre a falta de espaços físicos em Cachoeiro para a guarda e conhecimento do público quanto a aspectos de nossa história documental e audiovisual, Gilson diz não ter mais esperança que isso aconteça e cita que o poder público não se atém a esse importante viés que caracteriza sua própria aldeia e abre novos horizontes para que o natural da cidade conheça um pouco daquilo que antecedeu à sua geração", cabendo a Gilson Leão acrescer que "Cultura, dependendo de políticas públicas, só caminha à base de superfaturamento. Veja o caso do escândalo envolvendo o Ministério da Cultura, onde até casamento ganhou patrocínio da lei Rouanet. Em Cachoeiro, para não me indispor com quem quer que seja, prefiro que aqueles que se sintam prejudicados se manifestem".

 

Já de minha parte, reles cronista, alerto ao futuro prefeito que a História local existe e que seria muito bom que ele tivesse olhar sobre esse universo, a fim de evitar que, ao final de seus anos de governo, não se converta, também, no Incompetente Cultural nº 1 do quatriênio.

 

Preservação da memória

 

E aproveitando a viagem iniciada com a crônica ai de cima, vai também os comentários de Ailton Weller sobre o material histórico de Cachoeiro, que tenho sob minha guarda - principalmente fotografias antigas de Cachoeiro (quase duas mil fotos e algumas publicações históricas):

 

"Sobre a cessão desse patrimônio histórico para gestão da municipalidade, Mansur adianta que só irá disponibilizar o seu acervo ao público no "dia em que confiar plenamente no administrador e na destinação que será dada a todo esse material que é um resgate da nossa história em vários formatos" e sonha com o palácio Bernardino Monteiro transformado numa biblioteca pública onde a acessibilidade seja ofertada a todos os cachoeirenses e visitantes. "Enquanto isso não acontece, todo esse material fica sob a minha guarda e da minha família. Minha opinião sempre foi clara a respeito da política em todas as suas formas e práticas; e quem possui coragem para dizer a verdade sobre as coisas públicas sempre tem um preço a pagar por isso", finaliza, citando Maquiavel".

 

Beira-Mar

 

Jardelina Albuquerque

 

Tenho um hábito - ou mania - de chegar adiantada aos meus compromissos. Isso é mania de quem não se importa de esperar e pode perder esse tempo, para ganhar mais vida.

 

Há poucos dias, fazendo hora para um compromisso, vi cena que, numa observação casual, passaria despercebida, mas que para mim se tornou um momento de rara beleza.

 

Esperava dentro do carro, olhando para o mar, percorrendo toda a extensão da praia com um movimento simples de virar a cabeça, ora para um lado, ora para outro. Tenho também essa mania de ficar como que vigiando a natureza, olhando para tudo como se fosse a primeira vez. Estava um dia nublado, ventava, fazia até um pouco de frio e por isso estranhei uma figura de criança, que brincava alegremente à beira d'água. Fixei o olhar mais atento.

 

Era uma menina. Muito branca, cabelos muito negros, um maiô azul turquesa. - "É, mineiro não sente frio mesmo... quando se vê diante do mar". Foi o que pensei. Mas havia qualquer coisa ali, algo mais que uma mineirinha encantada com o mar. É que ao seu lado, também estava um senhor e logo percebi que os dois executavam gestos iguais como numa coreografia ensaiada. Não resisti ao impulso, saí do carro e fui caminhando lentamente pela calçada, para observar melhor o insólito par.

 

Parei de frente e - como quem não quer nada - fiquei analisando o que acontecia ali, a menos de 10 metros de onde me encontrava. Não demorou muito e entendi. Fiquei emocionada e quase desabei em lágrimas.

 

A pequena aparentava ter uns 8 anos de idade e o senhor ao seu lado uns 35. Pai e filha. A coreografia era de fato um ensaio. Os dois agachados na areia, o pai ensinando à filha, ensaiando com ela, a virar levemente o pescoço, ora para um lado, ora para outro. - O mesmo gesto que eu executara com tanta facilidade. A criança, portadora de grave deficiência motora, estava sendo exercitada pelo pai.

 

A beleza me atingiu. Mas, que beleza? A delicadeza e suavidade com que o pai pacientemente ensinava à sua pequena gestos tão banais. A alegria dos dois, quando a menina completava com muito esforço o gesto de trazer a cabeça para a direita e encontrar bem de cara com o seu pai. Ele a afagava um pouco e dizia entusiasmado: "muito bem, vamos fazer de novo". E riam os dois. E recomeçavam...

 

Teria aquela criança, consciência, da gentileza do seu pai, da ternura que colocava em cada olhar, da alegria que lhe causava cada esforço dela, que o simples gesto dela olhar para o lado era uma vitória extraordinária? Não sei... Com certeza eles se comunicavam, pois havia tanto amor, tanta felicidade nas alegres risadas, ela obedecia tão prontamente à carinhosa voz de comando, que me faz ter a convicção de que ela entendia e agradecia com um esforço maior aos cuidados do pai.

 

Não sei os seus nomes nem voltei a encontrá-los, embora tenha retornado à praia com esse intento mais de uma vez, no horário aproximado daquele dia. O que sei é o que ganhei com os dois. Uma esperança renovada na bondade do ser humano que se revelou para mim de forma inusitada e bela, através da coreografia criada pela linguagem do amor de um pai por sua filha. Que Deus os abençoe. (23.05.1996). 


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