Matar e morrer - Jornal Fato
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Matar e morrer


Tem-se morrido muito, no Brasil, ultimamente; talvez mais do que em outras épocas e mesmo em muitos outros lugares no mundo. Aqui se morre de morte morrida e de morte matada; além disso, também se mata por tudo e também por nada. Morre-se de morte morrida quando se adoece ou se acidenta, mas morre-se de morte matada quando se adoece ou se acidenta e faltam remédios e tratamento médico nos hospitais públicos. Morre-se de morte morrida quando se cai com o carro num rio; porém morre-se de morte matada quando se acidenta em estradas velhas, mal conservadas e esburacadas.

 

Mata-se aqui em nome e em defesa da lei e do Estado; mata-se por aqui também por dívida de jogo, de drogas e por um punhado de terra - que nem nossa é. Morre-se e mata-se por não se enquadrar em tipos ou padrões pré-estabelecidos; mata-se e morre-se por ação e por omissão. Imperícia, imprudência e negligência matam; vontade e má vontade matam também. Há inclusive quem ouse dizer que se mata por amor, quando na verdade morre-se pelo ódio. O Estado que protege é o mesmo Estado que mata; e mata tanto por morte morrida quanto mata por morte matada.

 

Morre-se de bala perdida - vinte e dois, trinta e oito, ponto quarenta e até ponto cinquenta e sete meia dois - não importando sua raça - como se não fôssemos todos uma só raça - credo, gênero ou classe social. Bala perdida não escolhe lugar para se alojar, basta você estar, mesmo que por uns poucos instantes e de passagem, no lugar errado na hora errada. Morre-se de bala achada quando você vê o que não deveria ver e por estar no lugar errado e na hora errada - mesmo que de passagem. Morre-se futilmente pela ilusão de se pensar imortal e eterno; mata-se por motivo fútil e pela certeza da impunidade e por se achar senhor da vida e da morte. Morre-se e mata-se porque em alguns lugares daqui a vida não tem valor.

 

Mata-se também, e muitos morrem por isso, quando se saqueiam as empresas e os cofres públicos. E essas são mortes indignas, desumanas, lentas e cruéis; milhares morrem à míngua ao longo dos anos, por fome, abandono e doença. Morrem reduzidos a sombras e restos do que foram um dia, morrem privados da sua dignidade de seres humanos. Mata-se a infância e o futuro nas creches e escolas públicas abandonadas; mata-se a velhice e a história pelo abandono e pelo descaso. E a certeza da impunidade, tanto dos que puxam o gatilho como dos que espoliam o que é de todos, alimenta sua coragem e audácia. E assim a violência e a opressão crescem.

 

Aqui se morre como se vive, na eterna e doce ilusão de que no fim tudo dará certo; afinal somos o país do futuro, abençoado por Deus e bonito por natureza. Aqui se mata com a certeza absurda de que Deus está do lado de cá do gatilho, não importando quem o puxe.

 

 


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