Mais uma tentativa - Jornal Fato
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Mais uma tentativa


Acordei com o pensamento fixo em você. Te liguei, deixei recado com todos os seus amigos, mandei e-mail para o seu chefe, joguei um bilhete por baixo da porta da casa de sua mãe e, por fim, voltei para casa sabendo exatamente o que fazer.

 

Liguei o chuveiro o mais quente possível. Enquanto o banheiro se enchia de vapor, escrevi a carta de despedida mais dramática que qualquer outra no mundo. Não basta sentir alguns minutos de culpa. Quero que você carregue a culpa eterna da minha partida. Quero que a minha morte te leve a um buraco sem fundo de onde nunca mais consiga sair. Quero que todas as outras mulheres te encarem como um pesadelo ou um símbolo de má sorte: ter você deve ser pior que gato preto, passar debaixo de escada ou sexta-feira treze.

 

Giletes, facas amoladas e tesouras, para ter certeza que não vou falhar. Entro na água quente e lentamente vou me cortando, deixando o sangue escorrer, o calor facilitando o fluxo. Vou devagar para dar tempo de chorar mais um pouco por tudo que era para ser e não foi: os filhos que não tivemos, as músicas que não ouvimos, o sexo que faltou e a paz que nunca chegou, mas pela qual também nunca lutamos. Confesse: o inferno fomos os dois.

 

Junto forças e corro até a cozinha. Abro um vinho porque é preciso celebrar. Me arrasto com a garrafa de volta ao banheiro. Bebo, me corto, choro, sinto a maldita autopiedade, lembro das suas mãos entre as minhas pernas, quase me arrependo, recomeço os cortes com mais forças e tudo perde a cor. Sinto líquidos quentes pelo corpo e ouço barulhos que parecem próximos e longe ao mesmo tempo. Não acho estranho, porque nunca refleti sobre a morte ser uma coisa silenciosa ou estrondosa.

 

Quando abro os olhos estou amarrada a uma cama em um lugar estranho, irritantemente branco, com cheiro de cloro. Tento me soltar sem êxito. Peço água com a voz tão confusa quanto minha cabeça. Junto com a água vem a explicação de que estou internada para reabilitação, que cheguei há três dias e mal podia respirar, mas que agora ia ficar tudo bem. Disseram que um anjo que não quis se identificar me deixou ali, pagou as despesas e foi embora.

 

Presta atenção: não se salva alguém da morte para trazer de volta ao inferno. Se é você o que eles chamam de anjo, corra. Vá para bem longe. Porque, se eu te pego, é você que morre em meu lugar.


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