Gentileza - Jornal Fato
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Gentileza


Estaciono em um bar escolhido ao acaso na beira da estrada para um café. Despertar para continuar a viagem. Depois de pedir pergunto quanto é e o atendente responde: "Não é nada não, senhora. Aqui o café é cortesia. A estrada anda muito perigosa e essa foi a forma que a gente encontrou de dar uma ajuda aos motoristas que param aqui.".

 

Nó na garganta. Precisei agradecer rápido e voltar para o carro. Era hora de transbordamento.

 

Transbordamos às vezes pelas coisas de sempre. Não choramos pelo calo do sapato do dia inteiro, pelos juros do cartão de crédito, pela falta de tempo para os amigos, pelo ônibus atrasado, pelo carro quebrado, pelos quilos a mais, pelas férias adiadas. Não choramos na hora da morte porque há burocracia e a ficha não cai. Não choramos pelo corpo cansado, pela cabeça cheia, pelo preço da gasolina, pelo copo de estimação que trincou, pela festa que não podemos ir, pelo filho que saiu de casa. Não choramos ouvindo aquela música que nos trouxe recordações, pelo filme de final triste, pelo poema de Drummond ou pela crônica do velho Braga. Não choramos pela dor do outro, pela fome de um pouco de atenção, comida, amor ou sexo. Não choramos pelo time que perdeu, pela noite mal ou não dormida, pelo cheque que volta, pelo céu da boca queimado, pela TPM, pela havaiana que soltou as tiras. Não choramos por presídios cheios nem por escolas vazias. Não choramos por golpes, injustiças, vandalismo. Roubaram o celular? Corre e compre outro. Parcele em doze vezes, mas não chore. Não choramos pela tinta da caneta que secou, pelo arroz queimado, pela dor de cabeça, ouvido, barriga ou cotovelo. Não choramos pelo atraso no consultório médico, pelo vestido rasgado, pela intolerância religiosa, pelo sexismo, pela homofobia e nem pela onda machista que insiste em permanecer em pleno sáculo XXI.Não choramos quando uma mulher é violentada, quando uma criança é escravizada, quando uma flor é arrancada, quando um animal é sacrificado ou quando o sol não nasce. Não choramos quando as nuvens escondem que é noite de lua cheia. Não choramos quando cortamos o dedo no papel. Não choramos quando a queimadura é de terceiro grau. Não choramos por quase nada porque não há tempo. Então, por isso, às vezes transbordamos. Transbordar, afinal, é preciso.

 

E nesse mundo ao contrário, onde a vida é rara e o amor escasso, transbordamos no essencial para a vida correr leve. A gentileza.


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