Dia seis - Jornal Fato
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Dia seis


Não. Não é um dia qualquer. Hoje, é dia seis do segundo mês do ano de 2017. Estou presa em casa, trocando passos e divagando sobre as inconstâncias da vida, o estado de caos e a problemática humana. Sinto-me como se perpassasse o livro Divina Comédia, de Dante Alighieri. Estou entre o inferno, o purgatório e o que será de paraíso.

 

Ligo a TV, algo raro em meus momentos de sossego (mas, hoje, não há sossego) e acompanho as últimas notícias. Vejo que meu lugar se enterrou na desordem, na instabilidade e em uma tempestade desconhecida. Desisto. Na internet, campo preferível, acabo de ser informada por amigos e próximos que afundamos, enterramos regras e não sabemos o que será (lembrei-me do samba- enredo de 1978).

 

Como assim? Bandidos na rua? Estamos enclausurados? Uma inversão de espelhos, refletindo a doença que nos encontramos, a degradação do Estado e a presença dos interesses particulares pernoitando acima do coletivo. Vejo tanta coisa, escuto tanta gente, nem sei o que estou fazendo aqui, sentada, sem iniciativa de não aceitar o imposto, o que tive de engolir amargamente. Dói tanto engolir cactos, areia, descaso, violência.

 

Querem nos (en) formar como cordeiros prontos para o sacrifício, mas já nos cortamos tanto para ceder aos desejos e desmandos governamentais? Estou cansada, é certo. Sinto-me em Kafka, em sua Metamorfose, agonizando, transformando-me em um inseto, perdida, escondida, rechaçada. O que teremos de nós depois disso tudo? O que restará da sociedade metamorfoseada?

 

Estamos na angústia, na agonia que não passa. Estamos na clausura e não há a chegada do paraíso. Vi cenas dantescas, visões implacáveis de indivíduos que se venderam como bandidos também. Aliás, se doaram a causa da desonestidade, do roubo, da mentira, da corrupção. E eu que pensava saber quem pertencia a "faixa de Gaza"; este é do bem, este do mal.

 

Eu que pensava e confiava em instituições e dormia o "sono dos justos" guardada por um impressão (que vi ser altamente tênue, enfraquecida, superficial) de segurança e estabilidade. Acreditava que andava em estradas, mas são cordas, guetos, buracos. São orifícios e frestas nos quais tenho me escondido, acorvadada minhas esperanças.

 

E quem são pessoas do bem? Realmente, vasculho a resposta, tento restituí-la na minha memória e achá-la como um elixir, mas não vejo. Não sabemos quem é o mal e o bem. O que vi foi barbárie. O que vi foi uma população que tomou as rédeas dos marginais e saqueou uma cidade. Roubaram a crença de que o homem é, em sua essência, bom. "Homo homini lúpus." É isto que pousa na minha cabeça.

 

Perdemos a moral que nos costurava, somos ventrículos de um cenário de caos? Barbarizamos com o outro porque nos corromperam?  Tornamo-nos coisas, embarcamos no processo de reificação? Inventamos nossas ordens e desordens, deixamos o social e imperamos os nossos instintos mais sórdidos? Cortamos nossa cabeça e junto o respeito ao que é do outro, à vida que o seu próximo construiu?

 

Estamos na danação, é certo. Nadamos, neste momento, na corrente do medo, do desrespeito, da injustiça, da falácia, da balbúrdia, do desacato à vida. Neste momento, estou enclausurada, pagando por crimes que não cometi, por um medo que me consome e absorve as forças que ousei ter.

 

E essa angústia kafkiana que absorve nossos dias. Ainda, sinto que a "maçã continua apodrecer em nossas costas." (Metamorfose, Franz Kafka) e que " sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas (Congresso Internacional do Medo, Drummond). 

 

Simone Lacerda é professora.

cheirosensaiosepoesia.blogspot.com.br


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