Danada de bonita - Jornal Fato
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Danada de bonita


Tenho deixado amarras para trás. Não quero carregar malas pesadas, pois, minha próxima viagem, requer de mim somente a alma com o tecido bem leve. Estou dessacralizando o que me doía por dentro e aprendendo, com certa maestria, agradecer o que me compete hoje.

 

Estamos adiposos demais, com colesterol de uma vida inteira, que nos impede de olhar o mundo e o outro com uma vertente mais saudável. Aprendo, neste instante, que todas as pessoas que estiveram ou atravancaram meu caminho passaram (parafraseando Quintana) e me permitiram aprender um "bocado" de coisa.

 

Sou, sem dúvida, uma mulher muito mais empoderada, dona do meu percurso, da minha desordem e das minhas perspectivas e conquistas. As pessoas que me fizeram chorar, tornaram-me mais dona de meus prantos e emoções, menos sorrateira e bem mais iconoclasta. As que me fizeram rir, me abrandaram de conflitos e dores que, possivelmente, corromperiam meu coração e o que carrego de mais ameno.

 

As que me ensinaram, agradeço pelos hemisférios de indagações e de fome de vida. Sou mais audaciosa com o discurso e menos enigmática nas palavras que não querem ser ditas. As que vieram de encontro, possibilitaram-me outras travessias, outras marés e menos bolores e manchas.

 

Estou descosturando tudo que me pareceu frustração, medo, tédio, impressões. Não quero carregar coração apertado e corpo inflamado, pois, sabemos, não dispomos de muito tempo nesta terra nem sempre navegável. Não me deixo agonizar mais nas madrugadas nem putrificar meus mais bonitos sentimentos.

 

As portas estão abertas para que eu possa inaugurar vertentes; uma nova história, uma nova esperança, recém pousada em meus braços, um novo bem-querer que me faça descansar e vibrar, que me acorde para um novo cenário e para o que nem dei por mim. Minhas janelas recebem, agora, uma brisa que desemboca em minhas entranhas e purifica minha forma discutível de olhar e compreender os fenômenos mais empíricos e mais complexos deste mundo.

 

Estou disposta. Aliás, sempre estive aqui, desejosa que tudo se reconstruísse e virasse pelo avesso. Não sou adepta de controle social e encargos obesos, estes que me fazem respirar com dificuldade e tiram meu ar de elegância. Não quero sustentar um universo virado de pernas para o ar nem inverter a noção de felicidade.

 

Talvez, o que busco seja realmente "uma casinha de sapê" com rede que corta a varanda, temperos que inundam o ar da casa, a poesia trazida de uma prosa feliz de marido e mulher, a expressão dourada de alegria por ter pescado um peixe ou colhido verduras sem agrotóxicos. Eu quero ser a mulher que se acostuma com a felicidade presente naquele esbarro, no escorrer das lágrimas quando recebe notícia inesperada, no poema que acabo de elaborar e que um amigo lê e diz que foi a melhor coisa que fiz.

 

Não tenho pretensões de lua, nem ares altivos e não negligencio o melhor dos amores. Estes que encontrei na fé corajosa, nos amigos, na mulher-mãe, no cão que me espera todos os dias com a melhor das alegrias, no trabalho que traz norte e materialidade para algumas coisas, na literatura que reinventa a minha existência e dá rumo aos meus sonhos irrealizáveis, na poesia que lubrifica meu espírito, em Deus, em tudo.

 

Estou voando mais uma vez, mas não desejo voos menores, quero asas grandiosas para meu coração. Desejo a vida cotidiana, sem farpas e frestas, como também, o mais espetacular de todas as coisas. A vida é a poesia danada de bonita!                                          

 

Simone Lacerda é professora.

cheirosensaiosepoesia.blogspot.com.br


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