Cortinas fechadas - Jornal Fato
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Cortinas fechadas


Levantei mais cedo e fechei as cortinas para a claridade não atrapalhar seu sono. Amar é um pouco isso também. Velar, ainda que de longe, o sono do outro, mesmo que você não possa dormir mais um pouco. Queria ter deitado com você e aproveitado o escurinho, mas é que hoje é sexta e eu preciso ir. Amanhã é sábado e, com alguma sorte de não ter compromisso, enrolaremos de ressaca na cama. O escuro do quarto será então seu e meu. Teria feito café, se você tomasse. Teria comprado pão, se tivesse tido tempo. Teria te beijado mais antes de ir, se isso não te despertasse tanto. Mas deixei as cortinas fechadas, e espero que tenha entendido as entrelinhas disso, que é a declaração de amor mais porreta que já fiz na vida.

 

No caminho do trabalho fiz uma prece para que o universo protegesse seu dia, sua vida e a vida da gente. Essa vida da gente que estamos tentando construir juntos, todos os dias. Dividir contas, tarefas e manias é exercício diário que estou aprendendo com você, meu bem. Tenha um pouco de paciência e não me odeie quando esqueço de trocar o óleo do carro, que eu prometo te perdoar pelas roupas espalhadas no sofá. Eu vou conseguir, apesar dos meus transtornos. E por falar em transtornos, perdoe-os também. Já não há remédios ou terapias para eles, mas podem ser abrandados com uma taça de vinho e um abraço seu. Conviva bem com minha TPM e minha bipolaridade, e eu convivo com seu olhar que às vezes se perde. Cada dia é um tijolinho a mais nesses mais de quatrocentos que já passamos. Quatrocentos tijolos já nos protegem de tempestades, vendavais, enchentes e furacões. A medida que ampliamos as paredes e subimos os muros vamos ficando menos vulneráveis. Desde o primeiro tijolo eu sabia que não seria fácil, mas seria possível. No primeiro terremoto tínhamos quantos? Quinze, talvez. E aqui estamos, afinal. Intactos. Nada me derruba se sua mão está nas minhas.

 

No abismo do desconhecido onde nos jogamos não podemos soltar as mãos. Sua asa esquerda é completada com a minha direita. Se nos soltarmos a queda será inevitável. Não é uma possibilidade, e que bom que não seja mesmo. Olha comigo lá na frente. Tá vendo um arco-íris? Agora volta o olhar para cá e aproveite o voo. Vamos continuar contemplando as mesmas coisas, sonhando os nossos sonhos e cuidando um do outro se, porventura, algum de nós se cansar. Nossa casa não tem árvore-de-natal, e obrigada por não me pedir isso. Mas tem muitos presentes espalhados. Uma recordação boa em cada canto. Muitas histórias em cada uma das coisas que, aos poucos, vão entrando no lugar.

 

Agora eu vou dormir. Me cubra de edredom e de amor. Amanhã é sábado, lembra? Pode deixar que eu fecho a cortina. E, dessa vez, vou dormir de novo.


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