Corações flexibilizados - Jornal Fato
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Corações flexibilizados


Há momentos na nossa existência que temos que acenar mais alto a bandeira, acender as luzes e chamas, que já se encontravam sem forças, servindo, apenas, de penumbra, sem provocação de incêndio, de iluminação de toda a casa. Chega o tempo de plantar as flores, árvores e um jardim inteiro. Torna-se o momento da mudança.

 

Somos seres que necessitam se metamorfosear, largar a fase de lagarta e se embrenhar em caminhos jamais explorados. A mudança é que dá sentindo novo às velhas estradas, aos olhares de alegria e de consternação, possibilita uma melhor compreensão dos pensamentos, mesmo que encontremos espécies ranzinzas, palavras enrijecidas e figuras mecanizadas.

 

Mudar requer desvencilhar de roupas que já não nos cabem, de sapatos causadores de calos e dores, de posturas enrugadas e perspectivas mortificadas. Graças a Deus, somos mutáveis. Graças a nós, mudamos. Graças aos outros, fomentamos transformações.

 

Nosso corpo muda com a poesia do tempo. Adquirimos experiências, inauguramos rugas no rosto e marcas da vida. Partimos do óvulo e espermatozoide e tornamo-nos gente; criamos raízes, fincamos família, celebramos amigos, fortalecemos esperanças. Estamos girando, a todo momento, o motor da vida. E, para valer a pena, há que se inventar as mudanças, mesmo que o dia amanheça duro, mesmo que gritem o ódio, mesmo que sentenciem como certas as desilusões, mesmo que excomunguem a nossa poesia.

 

As mudanças são o escape do óbvio, dos mares rasos e rios traiçoeiros, das mediocridades estabelecidas, dos nichos de covardia e amedrontamento. O enfrentamento é indispensável à sobrevivência, à emancipação do indivíduo diante dos venenos sociais implantados diariamente, às rupturas da alienação e das injustiças.

 

Somos sujeitos porque somos passíveis ao amanhã, ao novo que nos visita, à poesia esperançada que sempre dá um jeito de chegar em nossa janela. Nossas verdades são alimentadas de expectativas, nossos discursos são costurados nos tecidos do que esperamos inaugurar. A vida é capaz de nos surpreender, mas também somos capazes de ressignificar, criar, subverter, alargar, ultrapassar.

 

Saibamos que as mudanças, mesmo que tragam chuvas, também trazem ventos de possibilidades, trazem perfumes, trazem novos motivos. Mudar um objeto de lugar, um móvel, mudar depois de uma paixão tórrida, depois de uma viagem, mudar porque ficou mais velho, mudar porque ganhou responsabilidades, mudar porque buscou conhecimentos fazem tão bem a nossa casa, a nossa alma. Abençoados, sejam, dizia Albert Camus, os corações flexíveis, pois nunca serão partidos.

 

Simone Lacerda é professora.

cheirosensaiosepoesia.blogspot.com.br


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