Carta para Sérgio - Jornal Fato
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Carta para Sérgio


Nasci e cresci na rua Moreira olhando você nas suas estadas por aqui. No bar do Auzílio ou na varanda da casa de minha avó tocando e cantando. Eu era a criança que tentava entender os grandes olhos, as unhas pintadas e as camisetas cortadas. De nítido tenho ainda a imagem da sua mãe na calçada e os textos vanguardistas do seu irmão na parede do bar que ficava perto da ponde municipal, do qual sequer lembro o nome. Tempo, tempo, tempo?

 

Naquela época eram as piabas recém-pescadas a iguaria que atraía todos para a nossa rua. E foi ali, comendo piaba, quando eu já estava quase deixando de ser criança, que precisei separar a pessoa do artista. Foi ali que você me disse o quanto era patética a minha dor por ter perdido meu pai. "Morte é coisa natural" - você disse. E eu não entendi. E, confesso, ainda não entendo. Como não entendi, e ainda não entendo, como um artista com a sua sensibilidade tratou assim a dor de uma menina de quatorze anos. A pessoa e o artista. Muito cedo tive que aprender a separar. Gostava da sua música. Mas, naquele momento, deixava de gostar de você.

 

O homem partiu e o artista foi ficando cada vez mais forte a medida que eu crescia. Deixei aos poucos de dizer que eu era da terra do rei para me apresentar como sendo a terra de Rubem e Sérgio. Outros valores vieram e outras dores maiores que sua constatação que eu não poderia chorar.

 

Mudei de rua e a rua também mudou. Nunca mais encontrei piabas como aquelas. Nunca mais encontrei poemas como os seus. Na passagem de tempo, tragédias, encontros, letras e músicas, permanece o que é de verdade eterno.

 

Viva você, Sérgio. Viva você setenta vezes. E viva o legado do seu jeito torto de deixar uma ótima história.

 


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