Basta o essencial - Jornal Fato
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Basta o essencial


Casas e coisas deviam ser construídas dentro do princípio da funcionalidade. Penso isso todas as vezes em que preciso pegar alguma coisa, ou tenho necessidade de guardar algo no meu armário de cozinha, enorme, mas com nichos tão altos que só podem ser acessados por gigantes, ou a partir de uma escada, que raramente uso por motivos diversos, entre eles o medo de desequilibrar e me esborrachar no chão.

 

Com isso, sobra espaço e multiplicam-se vasilhas a serem guardadas organizadamente. Então se as coisas não são inteligentes por si, as pessoas precisam ser, e priorizar acessibilidade e conforto.

 

Hoje faria armários mais baixos e funcionais, sem dúvida. Mas deixei o projeto por conta da loja de modulados, que caprichou certamente, mas também não pensou nesse detalhe. É bonito, bom, não foi barato, e poderia ser melhor aproveitado se tivéssemos pensado nas pequenas coisas.

 

E de tema tão banal como o armário da cozinho migro para o essencial da vida. Os relacionamentos, o afeto, os amigos, o direito de mudar a direção, de diminuir o ritmo, de ser mais seletiva, de calar, de olhar criticamente a fé que alija e exclui, de estancar a verborragia tão dispensável, e às vezes tão compulsiva.

 

Mais do que nunca tenho priorizando o conforto, o sossego e a tranquilidade.  Como diria Ricardo Gondim em seu texto "O tempo que foge" (o texto é atribuído a Rubem Alves em "O tempo e as Jabuticabas" e a Mário de Andrade em "O valioso tempo dos maduros", em que são cerejas, e não jabuticabas), tenho mais passado que futuro, e já não tenho tempo para lidar com mediocridades nem para debater rótulos.

 

De fato não sei exatamente a autoria, já que ouvi até Antônio Abujamra atribuindo-o a Mário de Andrade, mas as palavras hoje me caem como uma luva.  "Também quero a essência, minha alma tem pressa. Quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade. Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade".

 

Isso num tempo de relações fugazes, felicidade que não se sustenta, mas amplamente exposta nas redes sociais, como se a direção tivesse que ser determinada pela maioria.  É preciso assumir definitivamente o controle da vida, do destino, acalentar sonhos, percorrer novos caminhos, ousar, independente de quanto isso seja difícil, se o entendimento é de que isso valha a pena e faça sentido, apesar do preço a ser pago e das consequências.

 

Sim, porque há um preço. E também consequências. Mas espero que entre elas estejam a paz interior, o equilíbrio (e até o desequilíbrio, se for o caso) e o direito à contradição, se mudar de ideia no meio do caminho. Se a maturidade tem vantagens, essa é uma delas. Se permitir mudança de rumo e foco, sem maiores explicações.

 

Ainda recorrendo ao texto de Gondim/Rubem/ Mário, "o essencial faz a vida valer a pena. E para mim, basta o essencial".  Exatamente isso. Exatamente assim, desse modelo, como diria uma amiga. Basta o essencial que tenha sido opção minha, independente do preço que tenha que pagar, e que me permita respirar fundo e prosseguir, livre, leve e solta nessa altura da vida.


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