Ana lembra a infância - Jornal Fato
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Ana lembra a infância


Minhas primeiras lembranças são da minha mãe chegando em casa quando já estava anoitecendo, deixando uma sacola de pão dormido para nossa primeira  e única refeição do dia, tomando um banho rápido e saindo com cheiro de alfazema e dente sujo de batom vermelho. Amontoados na sala, eu e meus irmãos ouvíamos quando ela chegava, mas mantínhamos os olhos fechados, fingindo dormir. Ela sempre trazia um amigo que a fazia gemer alto no quarto, e a maior parte deles batia nela e levava alguma coisa: um rádio velho, uma televisão que já não funcionava, um aparelho mudo de telefone, um relógio parado. Iam levando o pouco que tínhamos até não termos mais nada.

 

Quando eu tinha onze anos chamei a atenção de um dos amigos de mamãe. Foi a primeira pessoa que me olhou de verdade, me tocou e achei que ele gostasse realmente de mim. Fiz tudo que ele pediu, e adorei. Mas minha mãe não, e me mandou embora.

 

Vaguei por algumas cidades a pé e de carona. Até que um grupo de religiosos me resgatou e passei a viver em um abrigo, onde trabalhava em troca de comida, moradia e estudo. Aos dezoito anos pude ir embora, empregada na mesma faculdade que consegui entrar. Era inteligente, esperta e ambiciosa. Muitos diriam que tive sorte. Eu digo que tive pressa.

 

Meu sonho era que outro homem me olhasse como aquele amigo da minha mãe, com o querer que ele tinha naqueles olhos arregalados. Tive alguns, mas foram embora antes que eu acordasse e tivesse tempo de pegar telefone ou endereço. Fui aprendendo da forma mais difícil que não era porque eu cresci e podia fazer quatro refeições por dia que a vida seria fácil.

 

Quando eu te vi, sabia que seria diferente. Te quis na mesma hora, e sabia que era para sempre. Nesse tempo separados te amei e te odiei cada um de todos os dias. Agora desisti de não querer-te mais.

 

Não luto mais com o que sinto. Entreguei aos deuses minha dor e minha saudade. Meu amor é seu, só seu. Se não for comigo, não será de mais ninguém. Se eu não for sua, prefiro a morte.


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