Ana e os remédios - Jornal Fato
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Ana e os remédios


(Capítulo 29 - Penúltima parte)

 

Hoje acordei sem memória do que foi ontem, mas cheia de lembranças de tempos que passaram. De ontem, trago a língua azulada. Já acordei muitas vezes com a língua roxa por causa do vinho, mas azul não. Meu comprimido de clonazepan é azul, só que não solta tinta. Lembro de ter saído do trabalho e ter acordado hoje em minha cama. Lembro de antes de ter saído ter passado maquiagem e pegado meu casaco de couro no armário, porque íamos para algum lugar. Mas quem foi? Para onde fomos? Como último ato, que me vem agora, lembro de ter tomado seis gotas de rivotril para relaxar, porque fazia tempo que não saía, sabe? Depois apaguei a luz. Pronto. Isso mesmo. Depois disso fui acordar na minha cama com cara de panda, com a roupa de ontem meio com jeito de quem volta da guerra e apenas um pé de sapato ao alcance da vista. Devo ter bebido alguma coisa azul. Ou vinho e outra coisa que, misturadas as cores, deixou minha língua assim. Preciso de água, aspirina, bromoprida e alguma coisa mais forte para relaxar, e que me faça esquecer que eu esqueci o que aconteceu ontem. Benditos fármacos!

 

As lembranças que de hoje tratam justamente disso, sabe? Dessa minha relação com a bebida e os remédios. Dizem que vou morrer disso, mas até aqui foram eles que me salvaram. A vida sem álcool é preta e branca, pelo menos a minha. E a vontade que tenho é descobrir quem inventou os tarjas pretas e encher de muitos beijos. Que sejam condecorados os sujeitos que inventaram as drogas que legalmente fazem dormir, sorrir, ficar esperto, ficar mais lento. Ligam e desligam e a gente só precisa, no máximo, de um copo d'água para acompanhar. Embora eu prefira com vinho. Ou uísque.

 

Meu contato com os remédios começou quando eu era ainda muito nova. Acordava no meio da noite com frio, e imaginava que minha mãe ia chegar, me cobrir e me dar um beijo de boa noite. Eu sentia dores pelo corpo de tanto que desejava isso. Perdia o sono e amanhecia cansada. Um dia uma amiguinha do orfanato me apresentou o dramin. Eram comprimidos dados para as crianças menores mais rebeldes. Ah! Que maravilha! Mudou a minha vida. Como custava barato, logo que acabava eu conseguia comprar mais. Gradativamente, fui aumentando minha dose até chegar a cinco comprimidos por dia. E a partir daí parti para coisas mais fortes, mais adequadas com a minha personalidade.

 

Agora estou aqui, sem saber o motivo da minha língua azul. Deve ser coisa nova e boa. Porque, para conseguir me apagar, tem que ter categoria. Eu vou descobrir, pode ter certeza. E, quando tiver a oportunidade, é com ele que vou te trazer de volta para mim. Estou até pensando em voltar a estudar. Fazer faculdade de farmácia e ser minha própria cobaia, além de você, é claro. Serão dias gloriosos!

 


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