Ana e o Circo - Jornal Fato
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Ana e o Circo


(Capítulo 24)

 

A primeira e única vez que fui ao circo acho que tinha algo em torno de treze anos. Eu e os outros moradores do abrigo estávamos animados com a possibilidade de fazer alguma coisa que não fosse estudar, cozinhar, limpar e rezar. Usamos as roupas da escola dominical e engraxamos os sapatos. Lembro de uma das cuidadoras ter emprestado um pouco do perfume de alfazema para cada um de nós. Era, afinal, um dia de festa.

 

Não tínhamos dinheiro para pipoca, bala ou cachorro-quente. Até o início do espetáculo era um verdadeiro suplício não ter outra distração se não a de morrer de inveja das crianças que comiam todas aquelas coisas. A impressão que eu tinha era que se lambuzavam de propósito. E fui contida várias vezes para não comer o que caía no chão.

 

Mas, quando os artistas invadiram o picadeiro, era como se nada mais houvesse no mundo. Um apagar de toda a tristeza, fome e carência. Era a parte mais perfeito da infância que não tive e que estava sendo resgatada. Ou quase resgatada. Em determinado momento meus olhos encontraram os do trapezista, e a menina encantada com o circo deu lugar a mulher invadida pelo amor a primeira vista. Meu coração disparava a cada salto daquele homem! De amor, de medo, de emoção e de certeza que minha vida nunca mais seria a mesma.

 

Conrado, era este o nome dele, parece ter notado e correspondido. Mandou um bilhete quando eu já ia embora. E nem precisamos conversar: fui com ele quando o circo partiu.

 

Vivi dias gloriosos ao lado daquele homem. Eram dias e noites de amor entre os intervalos dos trabalhos. Senti-me um deles, colaborava com o que podia, mas, acima de tudo, estava cada vez mais apaixonada.

 

Quando partimos da última cidade, outra menina veio junto, e descobri que essas coisas aconteciam com frequência: a cada parada, uma nova diversão. Eu segui em outro caminhão, decidida a ficar até executar meu plano. Definitivamente aquilo não podia terminar assim.

 

Na noite de estreia na nova cidade, depois do sucesso, depois da festa, depois da troca de olhares com mais uma vítima da plateia, invadi o trailer dele com as facas do atirador. Depois de ter tido o trabalho de amolar cada uma, acertei em cheio Conrado e a pobre moça que também seria trocada na próxima viagem (aposto que, se estivesse viva, agradeceria o favor).

 

Depois voltei ao abrigo. A pé, de carona, arrastada e sabe-se lá como. Vivi uns dias de castigo, mas, comparado ao que você me faz, eu era feliz, muito feliz, e nem sabia.


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