Alma Lavada - Jornal Fato
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Alma Lavada


Após meses de estiagem, o barulho lá fora soa como música. Das mais agradáveis. É mesmo a chuva caindo ou apenas uma ilusão provocada pelo desejo e a saudade desse fenômeno tão natural, mas que se tornou tão escasso?

 

O sono e o cansaço não me impedem de conferir. Volto para a cama aliviada, não sem antes deixar a janela aberta para desfrutar a delícia de ouvir as gotas caindo, ????. A alegria se mistura com esperança de novos tempos e dias melhores. Tudo por causa de uma simples (e preciosa) chuva. Aparentemente inexplicável.

 

E o gatilho da memória afetiva é disparado. Volto à infância das minhas filhas. Uma delas, em especial, apaixonada pela chuva. Mas paixão daquelas de sair correndo e rodopiar, de braços abertos, com alegria contagiante, independente da intensidade, para o meu desespero.

 

E isso desde quando aprendeu a andar. Não entendia tamanho fascínio. Preocupada, enquanto pude fechava portas e portões, com medo de que gripasse. Meu marido, aos poucos, me convenceu de que deveria deixá-la desfrutar de prazer tão simples.

 

A empolgação dela era tanta que valia mesmo a pena deixá-la livre. Afinal, são mesmo essas coisas que fazem a vida ter sentido. Enquanto sou acalentada pela chuva discreta e mansa, penso em quantas vezes seria necessário ir à chuva, para, no sentido literal ou figurado, lavar a alma.

 

Lavar das dores que nos consomem, das feridas não cicatrizadas, das frustrações ede toda e qualquer negatividade que nos impeça de avançar em direção aos sonhos preteridos por agendas diversas que nos tiram do foco e do caminho, quase que imperceptivelmente.

 

Passou da hora de retomar a alma de criança e criar coragem para fazer coisas simples e libertadoras. Sem censura. Lavar mesmo a alma sem esperar pela aprovação de terceiros.

 

Abrir as fechaduras, romper as correntes e avançar, consciente dos riscos, mas acima de tudo com a certeza de que cada minuto valerá a pena.

 

A roupa molhada e o cabelo desarrumado não serão motivos maiores de preocupação. Se externamente tudo está fora do lugar, espero ter acomodado inquietações e desconforto até a próxima ousadia, que poderá ser dançar deliciosamente na chuva.

 

Valia intensamente a pena para a minha filha. Depois de aliviada das preocupações, dava gosto vendo-a aproveitar cada segundo dos seus deliciosos banhos de chuva.

 

Penso que ainda hoje há de valer a pena para qualquer um que esteja disposto a encontrar nas coisas simples o significado, ou a ressignificação para a vida, tão agitada e às vezes vivida de forma pouco intensa e apaixonada.

 

E quase sempre a intensidade não está exatamente nas coisas complicadas e distantes que imaginamos como condicionantes para a nossa felicidade. Podem estar na simplicidade de um simples banho de chuva, na tempestade, na brisa suave ou no canto de um pássaro.

 

Pensando nisso, redescubro que sou apaixonada pelas coisas simples da vida.

 


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