A permanência da vida (poesia) - Jornal Fato
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A permanência da vida (poesia)


Sempre quando contemplo a obra surrealista A persistência da memória (1931), de Salvador Dali, tenho uma intensa sensação de que estamos, insistentemente, perdendo nossas vidas. Vejo os relógios derretidos no galho seco, na cabeça de um homem e sobre o móvel e remeto-os ao nosso cenário cotidiano, as problemáticas instauradas a partir do danado tempo.

 

O tempo coordena nossos compromissos e horários, o tempo determina a criação e o extermínio de esperanças e das emoções, o tempo nos liberta ou nos mantém em exílio ou em prisão para que continuemos expiar nossos dilemas. É o tempo que inaugura e mata. E, desta forma, caminhamos entre pontas e frestas da vida.

 

Mas, isso legitima ainda mais nossas frivolidades e nossas fragilidades. Perdemos tanto a vida quando nos intitulamos melhores que alguém. Perdemos quando apostamos todos os dias em fichas que não valerão a pena. Sabemos das incertezas e da corda bamba e, mesmo assim, deixamos de viver coisas maravilhosas para dar conta dos horários e responsabilidades que, sejamos sinceros, poderiam ser resolvidos em outra hora.

 

Damos destaque demais aos pincéis que traçam cores frias e aos cenários doentes ao invés de fotografarmos nossos eventos de maior alegria. Ou quem sabe selarmos a poesia de dias melhores, de confetes espalhados por toda a casa. O tempo é impalpável e dinâmico, devendo ser vivido e não consumido.

 

O que fica são o legado, as lembranças fomentadas e os risos cristalizados nas memórias. Perdemos a vida se nos colocamos incapazes ou acima de qualquer mortal. Perdemos quando destratamos ou ignoramos aquele que nos quer tão bem, quando gastamos tempo com as amarguras costuradas junto ao coração, as quais mudam a cadência de seus batimentos.

 

Perdemos a vida quando deixamos de olhar com carinho o outro, não demonstrando sensibilidade. Nossos relógios desmancham quando enclausuramos a felicidade e o perdão, quando escorremos só críticas de nossos lábios e não cantamos, com maestria, os elogios. Tão bom ter afeto, ser visto de forma singular, ser amado.

 

E o que tem feito o relógio escorrer? E o que tem mantido o galho seco? O que fazemos com a breve noção de tempo? Tenho certeza que Chronos (deus do tempo-mitologia grega) não gostaria que dissolvêssemos o tempo em tantas desimportâncias, em tamanhas canalhices. Não adubemos a arrogância, a prepotência, o desrespeito, a falta do querer bem.

 

Dali nos ensina que o tempo, comido de forma feroz pelos excessos do cotidiano, é a oportunidade de construir nossa obra suprema, nosso livro mais bonito e mais profundo. Um livro que, lido por muitos, mostrará que não subsistiremos. Persistirá, apenas, a memória do que faremos com a nossa poesia.


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