A emblemática existencial - Jornal Fato
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A emblemática existencial


Vivemos em período líquido, como já dizia Bauman. Tudo sempre pronto a se desfazer, a terminar. Nada é tão concreto quanto à plastificação do tempo, das mudanças que acampam nossas casas e comportamentos. A vida habita entre poeiras e farelos, entre frestas e gentes que se dissolvem de forma repentina. E o que é a morte?

 

Para diferentes grupos e tribos, a morte pode alcançar uma instância além, um recomeçar e, definitivamente, um ponto no texto que produzimos todos os dias. Mas, é isto: perambulamos entre vida e morte, entre renascimentos e desesperanças. Construímos a nossa história nestes freios e rompantes que nos permitem sonhar, esmorecer e poetizar sobre o que nos comove e nos dá o amparo para que continuemos seguindo.

 

"Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida", pontua Bauman, diante da perplexidade que se constrói ao longo da existência. Somos sujeitos trágicos que remontam suas esferas a todo tempo. Somos indivíduos errantes que desfalecem perspectivas e inventam novas formas de vencer o cansaço trazido de todas as tardes. Nada é mais "bizarro" e fantástico quanto tudo isso.

 

Tais adjetivos costuram a nossa imprecisa vida, o modo cambaleante que estamos condenados e porque não dizer agraciados também. Acordamos em cenários de agradecimento e de convencimento quando reverenciamos nossas possibilidades, pois, acreditamos, que estar vivos é realmente o melhor de todos os presentes. Temos tudo, embora estejamos destinados ao nada; ao vazio, ao rompimento, ao fim.

 

Os líquidos escorrem de nossa humanidade e sustentar-se diante da ausência e do caos requer de nós algo surpreendente. Somos desejosos em querer o que sabemos que nos escapará, mas o que permanecerá? O visgo de uma sobrevivência; os aspectos oscilantes e primários que nos fazem superiores a outros animais, o que nos preenche com um senso de humanidade perene, mesmo mortais, a consciência de que podemos superar uns aos outros, o que, secretamente, fomenta nosso ideal em permanecer?

 

Somos muito prováveis, porém, realinhamos nossa vida em uma falsa impressão de eternidade e de riquezas não rasas. Prosseguimos diante de um precipício que chegará, diante das desordens tão solidárias a nós, da linha tênue que separa os vãos da vida e da morte.

 

Pernoitamos e amanhecemos entre dias ensolarados e breus, entre a multidão e a mais completa "sozinhez", entre o que não ficou e o que nos restará. É assim entre danos e acertos, no resquício do que brotou do amor e das verdades, construídas nos solos arenosos da dita civilização. A desarmonia dos dias habita nossos espaços vazios e tão solitários, nos aprumando uma vaga ideia de felicidade, tão(in) certa e liquidificada.

 

Somos imprecisos, porém, acreditamos que a alegria dos dias é possível, reinventando nossos papéis em branco que, por ora, estão amarelados e já amassados. E o tal líquido, escorrido por entre nós, tenhamos como emblema para que a nossa alma voe, mesmo que nosso corpo teime morrer.

 

(Sigamos no voo)

 

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