O molequinho com sorriso de maré

Crônica inspirada na canção "Ventou, ventou", de Jorge Vercillo

25/10/2024 09:12
O molequinho com sorriso de maré /Foto: Reprodução/web

"Está vendo aquele feixe de sol, lá longe, que, depois de ter vencido as nuvens cinzentas, agora tinge o oceano de laranja? É a esperança; finalmente, ela está por perto", comento com a minha garota com rosto de coração, a quem desenhei-concebi, com meu indicador direito apontado para a infinitude, há algumas alvoradas de janeiro.

(Ocorre que, dos últimos verões para cá, a lavoura de sua fé passou por momentos de quase absoluta, senão total, aridez; coube tão somente a mim, desde então, cultivá-la com a resiliência de um cabra sertanejo, daqueles que, devotos de Padim Ciço que são, jamais deixam de aguardar pela chuva, ainda que a estiagem teime em castigar sua plantação, sobretudo sua obstinação.)

"Roda moinho/ Trazendo boas novas, quem será/ Despenteando toda mangueira/ O vento quer brincar/ Lá vem mocinho/ Em zigue e zague pelo capinzal/ Levanta as saias, tremula bandeira/ Bateu no mar/ Ventou, ventou...", verseja, timbre em tom marino, o cantador-pescador, a poucos metros de nós dois, narrando que o vento-erê, mensageiro de ventania-mãe (Eparrei), havia acabado de vir do noroeste-anil.

"E o que ele veio fazer aqui?", questiona minha garota, num misto de perplexidade, dúvida e contemplação; sentimentos e hesitações que brilham nas íris de seus olhos. "O vento traz no ventre o teu amor, amor", responde melodiosamente a maresia-rainha (Odoyá), qual um arcanjo, ao nos anunciar a chegada de nosso primogênito.

"O bebê de vocês dois virá à luz já incumbido de uma doce missão: apenas com seu sorriso, o molequinho vai ensinar a todos que a perseverança sempre há de se sobrepor à covardia; que a convicção, quando divina, sempre há de transcender ao ceticismo humano; que a felicidade, feito a lua, sempre há de ser soberana à tristeza", vaticina.

A maresia-rainha também nos antecipa que, através do sorriso de nosso vindouro filho, leremos a poesia da serenidade, segundo a qual paciência rima com devoção. "O sorriso dele terá força acolhedora; nele, enfim, estará o porto seguro que tanto almejaram. O molequinho com sorriso de maré será a glória triunfal e definitiva do amor de vocês dois", preconiza ela, antes de se recolher de volta à sua morada.

(Crônica inspirada na canção "Ventou, ventou", de Jorge Vercillo, e originalmente publicada no jornal A Gazeta, em novembro de 2014)