Ter razão ou ser feliz? - Jornal Fato
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Ter razão ou ser feliz?

Mudaram os tempos ou mudou a menina atrevida que morava em mim e não levava desaforos para casa?


Mudaram os tempos ou mudou a menina atrevida que morava em mim e não levava desaforos para casa? Em que parte do caminho a pirralha que brigava todos os dias na escola foi intimidada e se recolheu aos seus medos e às convenções?

Já se passaram tantos anos em que o bullying me alcançou que a memória falha. Mas lembro de ter saído nos tapas com um colega que passou a mão na minha bunda na quinta ou sexta série. A cara do moleque foi pouca para tantos arranhões feitos pela unha gigante e afiada (deixá-las crescer e pintá-las foi a forma de parar de roê-las até o sabugo).

Com isso, apesar de ter as melhores notas, e até receber o carinho dos professores, era considerada uma pimenta brava, fera a ser domada. Volto no tempo e lembro que minha intolerância aos abusos começou bem no início da vida escolar. Provocou, desrespeitou, apanhou. Era simples assim.

Não tinha jeito. Talvez (ou não) precisasse ser adestrada.  Eu prometia que naquele dia não haveria brigas, que as provocações entrariam por um ouvido e sairiam pelo outro. Mas lá pela quarta ou quinta afronta, os propósitos de paz e amor caíam por terra. Afinal de contas, comecei a brigar na primeira infância para defender os meus e os direitos violados dos amigos.

Na minha escola, como em todas as outras, tinha o valentão que botava medo em todos os alunos. Pato Roco o apelido. Todos se borravam de medo, inclusive eu, a menina tida como brigona e corajosa. Ele tomava cadernos e lanches, quebrava lápis e tocava o terror. Sua palavra era ordem. Não para a menina acostumada a sair no tapa com gente muito maior que ela desde que se entendia por gente.

Um dia o valentão foi para o meu lado exigindo o material escolar. As mãos suavam, o coração palpitava tanto que parecia que ia sair pela boca. As pernas tinha um tremor quase incontrolável.  Estufei o peito, levantei a cabeça, coloquei a mão na cintura, em postura de mulher maravilha (recentemente um estudo divulgado garante que ficar dez minutos nessa posição aumenta o poder e a capacidade de fazer qualquer coisa) e encarei o malvado duas vezes maior que eu. - Não entrego. O material é meu.

Busquei forças não sei onde, mas a voz nem tremeu.  Surpreendido e sem palavras, o valentão, que sempre estava acompanhado de outros tão babacas quanto ele, parece não ter acreditado no que ouviu de uma pirralha, mas recuou, me mandou ficar esperta e não atravessar o caminho dele e mudou a direção. Respirei aliviada, ainda com o coração aos pulos.

Pois é. Essa cara fui eu. Ainda me pergunto em que parte do caminho a menina atrevida, ousada e corajosa se perdeu.  Talvez nas opções racionais e pragmáticas. A gente amadurece e aprende que é melhor se abstrair e focar no que realmente vale a pena, que é melhor ser feliz do que ter sempre razão, se isso for causar desgaste além da conta.

Descobri que existem outros caminhos fora da violência e do confronto direto, que embora mais longos, são mais duradouros e gratificantes. É por eles que tenho transitado nos últimos anos. Às vezes com um grito aprisionado na garganta. Em outros, livre, leve e solta, que é como deveria ter sido desde sempre. Mesmo que em alguns momentos seja necessário fazer cara de paisagem.


Anete Lacerda Jornalista

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