Sigamos sendo baratas! - Jornal Fato
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Sigamos sendo baratas!

Já estava quase adormecido quando senti o bicho andando na minha perna esquerda


Já estava quase adormecido quando senti o bicho andando na minha perna esquerda. Controlei a ansiedade de sair pulando, chutando, batendo mão e travesseiro.

Lentamente movi a perna para o ângulo e a posição que eu queria e fiz o movimento rápido e seco de um chute ninja. Pude ouvir o barulho que ele, o bicho e não o chute, fez ao se chocar contra a parede. Sai rapidamente da cama e acendi a luz. No chão, meio tonto, um barato, ou uma barata macho, que não causa tanto asco quanto a fêmea, mais parecido que é com um pequeno besouro ou algo semelhante. Eu estava descalço, o chinelo cerca de 2 metros de distância. Sem tirar o olho do barato fui me abaixando e inclinando em direção à minha arma mortal, atento a qualquer movimentação do inimigo. Ele continuou parado, talvez ainda abalado pela surpresa do voo, do golpe contra a parede ou da luz em seus delicados olhos. Peguei o chinelo e ele ali parado. Vou me aproximando e ele ali parado. A resignação em pessoa. Ou em inseto. Desisto de mata-lo.

Pensei que talvez a vida que ele levava ao lado da barata não fosse grande coisa, pensei que talvez a morte seria uma saída digna para sua dor, pensei que ele havia me escolhido como seu carrasco.

Pensei que se fosse uma fêmea talvez eu a tivesse matado na hora. Pensei se não havia sido um espírito de corpo que me fez deixa-lo vivo. Pensei que eu estava com muito sono pra ficar dando uma de Clarice Lispector no meio da madrugada, indagando sobre questões de gênero na relação entre mim e um barato.

De manhã o encontro morto perto da porta.

No fim, ele só estava velho.

Às vezes todas as filosofias da vida não chegam nem a arranhar o tempo e seu processo inexorável rumo ao fim de tudo.

Sigamos sendo baratas.


Leandro Vieira

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