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Não existe estupro culposo

Dia desses fui provocada a ouvir Praia dos Ossos, podcast apresentado pela jornalista Branca Vianna


Dia desses fui provocada a ouvir Praia dos Ossos, podcast apresentado pela jornalista Branca Vianna, que conta a história do assassinato de Ângela Diniz e dos julgamentos do seu assassino Doca Street, que teve sua defesa baseada em "legítima defesa da honra", utilizando-se como únicos argumentos o "mau" e "inadequado" comportamento da vítima e seu passado "duvidoso". O crime, que aconteceu em 1976, teve em 1981 um segundo julgamento, quando então Doca foi condenado a 15 anos de prisão porque já existia aí uma maior mobilização acerca dos direitos da mulher, principalmente da não violência. Uma vitória tardia, árdua, trabalhosa e que custou uma vida que incomodava por ser conduzida de forma livre e contestadora. Uma vitória que foi possível graças ao movimento feminista, que não marcou o fim dos abusos, mas o início de uma luta dura e desigual.

Praia dos ossos me trouxe de volta a morte de Araceli, que em 1973, com oito anos de idade, foi raptada, estuprada, morta e carbonizada. Seu corpo desfigurado e deixado em uma mata é o retrato da impunidade daquela época, e que ainda não mudou nesses mais de 40 anos. Ao contrário do justo e do certo, seus assassinos, membros de famílias ricas e influentes até hoje no Espírito Santo, dão nomes a avenidas importantes, e é impossível não sentir nojo e vergonha. Depois de recorrerem da condenação, foram absolvidos em uma sentença de mais de 700 páginas pelo TJES. A família não aguentou a dor e se desfez. Um estupro, uma morte, uma violência desse tamanho não acaba. Não existe fim. A dor é latente por toda a vida, por gerações, por todas as mulheres do mundo.

E a gente, em um misto de dor, medo e raiva, vivendo em um país onde Bruno e Robinho são apoiados, queridos, defendidos e exaltados, vimos Mariana Ferrer ser injustiçada, humilhada, desrespeitada e, em um equívoco imperdoável, levada de vítima a ré. Em um verdadeiro show de horrores a quadrilha formada por André de Camargo Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, Thiago Carriço e Rudson Marcos provou, para quem ainda tinha dúvida, o quanto perniciosos são o machismo e a misoginia. Como essas pessoas que acusaram e se apoiaram e se protegeram dormiram em paz? Como esse bando de abusadores podem viver inseridos em sociedade?

Mariana é uma moça linda, que estava trabalhando em um lugar na área nobre e supostamente segura de Florianópolis. Uma jovem que é filha, que postava fotos em suas redes sociais como usualmente acontece, que trilhava um caminho de sonhos e que era virgem. Ela se sentia protegida naquele ambiente, mas não estava. Ela foi incentivada a denunciar porque as propagandas, os cartazes, as ONGs, a justiça e a polícia incentivam. Mas alguém entende agora que é mentira? Que denunciar não é tão seguro e nem tão eficaz assim? Ela foi estuprada em 2018, mas ainda não acabou. Ela continua sendo violada. É inútil achar que acaba. Eliza Samudio, Araceli, Angela Diniz e muitas outras continuam morrendo. Dante Micheline, Paulo Helal, André, Bruno, Robinho e muitos outros continuam impunes. E você, que faz apologia ao patriarcado e que nega, abomina e marginaliza o feminismo, também faz parte disso. Não existe estupro culposo.


Paula Garruth Colunista

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