Culpa não - Jornal Fato
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Culpa não

Quando ele me traiu minha primeira reação foi tentar encontrar onde foi que eu errei


- Quando ele me traiu minha primeira reação foi tentar encontrar onde foi que eu errei. Mas eu cuido da nossa casa e das crianças, trabalho e contribuo com as contas e faço sexo com ele sempre que ele me procura. Acho que o que incomoda é o cheiro de cebola porque preciso cozinhar a noite. De manhã ele leva marmita para o trabalho.

Esse foi o relato de uma mulher em um grupo de conversa e terapia para vítimas de violência e abusos. Mulheres sentem mais culpa do que os homens, não por fatores genéticos, mas porque elas têm um histórico de serem culpabilizadas pelo comportamento das outras pessoas. Se apanha é porque fez alguma coisa para merecer. Se é estuprada deve ter tido um mal comportamento. Se tem um filho que usa drogas é porque não soube cria-lo.

Não importa em que parte do mundo vivam ou qual religião professem ou deixem de professar, mulheres pedem desculpas por qualquer tipo de violência a que são submetidas pelos seus parceiros, seja ela física ou não. E a parte mais difícil é quando se enganam ou querem se enganar justificando a selvageria como prova de amor ou de cuidado. A vida passa a ser então um eterno pedido de desculpas. Pedem desculpas quando são desrespeitadas como se tivessem feito algo para merecer. Pedem desculpas pelo parceiro que deixou de amá-las porque em algum momento perderam a vaidade ou deixaram de ter tempo para se cuidar. Pedem desculpas pela casa que não anda na mais perfeita ordem como se ali morassem sozinhas ou como se fossem as únicas responsáveis por manter a limpeza e a organização do lar.

Em Otelo, de Shakespeare, Desdemona morre estrangulada pelo seu marido. Quando Emilia pergunta quem fez isso é a própria Desdemona, antes de morrer, que responde: "Ninguém. Eu mesma." Embora seja uma obra do século XVII o fato é atual, real e assustador.

É hora de deixarmos o papel de culpada e nos assumirmos como vítima de uma sociedade misógina, machista e doente. E assumir aqui o papel de vítima não é abaixar a cabeça e se fazer de coitada, mas sim de estarmos prontas para dizer não, para lutar contra a toda e qualquer forma de preconceito e violência a que somos todos os dias submetidas, para denunciarmos e fazermos valer nosso direito de liberdade em sua plenitude. Liberdade de ir, vir e, acima de tudo, de SER.

O mundo por si só já anda complicado. A rotina assola e os dias parecem nos oferecer cada vez menos tempo. Assuma seus atos, respeitem as pessoas e vamos aprender a nos proteger. Umas às outras. Carreguemos nossos aprendizados, falhas e vitórias. Isso já torna a bagagem suficiente. Culpa não. Deixem-na para quem realmente merece.


Paula Garruth Colunista

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