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Ainda temos tempo

Não sei se mudamos nós ou as coisas à nossa volta. Uma coisa é certa: o tempo que vivemos é curto. O período que passamos na terra é pequeno


Não sei se mudamos nós ou as coisas à nossa volta. Uma coisa é certa: o tempo que vivemos é curto. O período que passamos na terra é pequeno. Uma vida de utilidades, menor ainda. Momentos de escolhas e decisões diminuindo com os meses e anos vividos. Mais: percebemos tudo isso no envelhecimento. Quando, na maioria das vezes, ficamos mais lentos e pouco podemos mudar.

Nascemos: passamos anos sendo cuidados, sem interferir no mundo à nossa volta. Alegramos pai, mãe e parentes próximos. Acumulamos coisas em nossas mentes e memória, algo que escondemos de nós mesmos na idade adulta. Crescemos. Na adolescência, evoluímos indefinidos e inseguros. Quando adultos trabalhamos e criamos família. Na maturidade ficamos sozinhos com o conhecimento da vida. Voltamos à insegurança por não saber o tempo de vida que nos resta.

Podemos escolher não pensar e, assim, deixar passar os anos, vivendo simplesmente, alienados e vazios. Iludidos ou falsamente felizes. Melhor agir, mesmo correndo todos os riscos. Enquanto não decidimos, enquanto pensamos, não vemos as mudanças à nossa volta. Perdemos referências. Ficamos perdidos em nossas necessidades e desejos diários.

A referência maior é a cidade em que vivemos. Ela une pessoas, seus desejos, e pode oferecer uma vida com qualidade, desde que bem estruturada. Bem mais que a nossa própria casa. O prazer é coletivo. Algo que ultrapassa satisfações individuais. Quando não temos a cidade como referência, quando não valorizamos a coletividade, deixamos de observar o lugar onde moramos e nos escondemos em nossos ninhos, correndo o risco de morrermos isolados. Quando não olhamos pela cidade, nos acostumamos com as perdas e não percebemos de imediato a falta que nos fazem. São coisas pequenas, minúcias do dia a dia. Coisas grandes demais para serem substituídas.

Em Cachoeiro, sinto falta do restaurante Dom Tonico, lugar aprazível, uma boa massa, uma conversa... Sinto falta das noites da Beira-rio, em seu fim de semana, com os adolescentes na balaustrada à beira do Itapemirim - parecem diferentes em dias atuais, adolescentes sem a alegria de antes. Sinto falta da música ao vivo em alguns pontos da cidade, uma reunião ou discussão política (ideológica). Fico com a impressão de que a violência e o medo afastaram as pessoas das ruas, viviam mais a vontade nas noites cachoeirenses - vivemos reclusos, escondidos em nós mesmos. Sinto saudade dos saguis que pulavam de fio em fio no bairro Gilberto Machado, provenientes da Samarina da Praça dos Macacos. Sinto falta do turbilhonamento nas águas do rio.

A cidade mudou, parece envelhecida. Ainda temos as árvores, algumas frutíferas, no centro de Cachoeiro. Temos acácias, flamboyants... A cidade mudou, mas mudei bem mais que ela. Nos anos que aqui estou, sinto ter envelhecido bem mais que ela. Ela terá tempo para se recuperar. Eu? Não sei. Triste é saber que coisas que não imaginava ver estão se revelando. Triste é perceber que as mazelas sociais, ambientais e a violência interferem nas cidades e bem pouco se faz.


Sergio Damião Médico e cronista

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