Um bom dia para morrer - Jornal Fato
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Um bom dia para morrer


Iniciei uma de minhas crônicas com um trecho da música Roda Viva, de Chico Buarque - tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu. Pois é, há momentos em que me sinto tão em paz comigo, com as pessoas à minha volta e com o mundo que digo para mim mesmo: hoje seria um bom dia para morrer, acho que hoje eu poderia morrer em paz. Sim, não se assuste, você que me lê, por que não? Por que não ter coragem de dizer, de assumir isso? Afinal, podemos não saber a hora ou o dia, mas todos nós sabemos que um dia será o nosso dia de irmos embora; estejamos preparados ou não, estejam nossas malas feitas ou não.

 

Pois é, num desses instantes em que minhas malas estão prontas é que eu digo para mim mesmo: hoje eu poderia morrer, hoje eu iria em paz, iria feliz. Mas afinal que história é essa de malas prontas? Suas malas estão prontas quando você fez tudo que podia - e deveria - fazer, disse tudo que poderia - e deveria - dizer, da maneira correta, na hora adequada e para as pessoas certas. Ou seja, não deixou nenhuma ponta solta, não falou ou fez nada de mais nem de menos; não sobrou, nem faltou nada. Você foi perfeito em tudo que disse ou fez - se é que é possível algum ser humano ser perfeito.

 

É ao mesmo tempo uma sensação de paz, de dever cumprido tão forte e envolvente, mais forte que você com toda sua racionalidade, que lhe dá essa certeza: hoje poderia ser o dia, hoje eu estou preparado. Nesses dias os pulmões parecem se encher de ar mais do que o normal - o ar até parece mais puro - as cores estão mais vivas e a paz que lhe envolve é tão densa e forte que nada parece ser capaz de lhe afetar. Eu me sinto assim em alguns dias, em alguns momentos, pelo menos.

 

Isso acontece normalmente nos dias de céu azul e em que sinto o vento no meu rosto, dias em que meu corpo se cansa mas a minha mente está ao mesmo tempo ativa e em paz. Dias em que estive com pessoas que eu amo e que são importantes para mim; pessoas a quem por isso mesmo eu deveria dizer amo você, mas não digo, nem sei por quais motivos. Mesmo que meus olhos o expressem, mesmo que minhas atitudes o provem por incontáveis vezes, minha boca não é capaz de dizê-lo. E eu sei que mais cedo ou tarde posso me arrepender de não tê-lo dito.

 

Assim, contraditoriamente eu tenho consciência de que preciso estar pronto para quando meu dia vier; de que eu preciso estar com as malas prontas, arrumadas para minha última viagem. Que eu faça o que deve ser feito, da melhor maneira que eu puder fazer; que eu diga o que deve se dito, da melhor maneira que eu puder, nada de mais, nem de menos.


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