O QUE É O MUNDO!? - Jornal Fato
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O QUE É O MUNDO!?


Os tempos eram outros. Os coronéis sentiam no ar a mudança e a sabia inevitável. As rédeas outrora firmes, seguras por mãos de ferro, agora folgavam, malgrado o esforço que faziam para dominá-las.Difícil acompanhar novos tempos por quem estava acostumado a mandar. Nisso eram concordes o Coronel Luiz e o Coronel Antonio Carlos, embora não fossem de ficar trocando impressões um com o outro. Aliás, não trocavam impressões sobre nada, nem conversavam, resultado de anos e anos de futricas pessoais e batalhas políticas que foram roendo possibilidades de um aceno cordial.

 

A situação política se deteriorava para eles ao longo das incontáveis eleições e nomeações para cargos públicos. A troca de currais eleitorais dos fundões da roça pelos das periferias da cidade se acentuam cada vez mais e traziam novas caras e novos líderes. É o que os empurrava a tomar posições iguais, embora um não soubesse dos atos e pensamentos do outro. Até isso, pensar a mesma coisa, era impossível imaginar que os coronéis viessem a fazer algum dia.Por isso, a comunhão de interesses, pensamentos e decisões não era fruto de acordo selado com fio de bigode. Era fruto de batalhas que começavam a perder e resultado da necessidade de manter suas velhas forças que estavam sendo sugadas.

 

A indisposição de um com o outro era tão grande e desgastada que atingia o fígado. Basta dizer que o maior prazer do Cel. Antonio Carlos era dizer que o Cel. Luiz não tinha mãe ("mulher nenhuma pode gerar, pelo menos vivo, um bicho xucro como esse"). E não cansava de repetir histórias que ele mesmo se inventara nos últimos 40 anos. Como era doce ouvir de volta suas histórias transformadas em coisas mais terríveis ainda! Coisa do demo é o que dizia - e se apressava em fazer o sinal da cruz.

 

De sua parte, o Cel. Luiz, ao menos a mãe do outro respeitava, até porque tinha consideração pela finada D. Mariquinha, viúva que fora do não menos finado - que Deus o tenha - Cel. Benedito (o pai, não era essa ranca-tripas que passeia por aí).Pois é, respeita a mãe. Mas, como ia dizendo, das ruindades de um e outro, o Cel. Luiz tinha pleno prazer em fazer divulgar entre seus jagunços e eleitores que o Cel. Antonio Carlos era mestre na arte de furtar cofres públicos - dizia com convicção da verdade, com tanta certeza e cerimônia que muita gente - quase toda - acreditava.

 

Dizia que a mansão do Cel. Antonio Carlos fora construída com muita reza, à base do terço e com muito dinheiro de imposto. E que tal se dera, quando o diabo, o Cel. Antonio Carlos, fora intendente da desgraçada vila, que mesmo assim sobrevivera à pilhagem.Muita reza, porque o Coronel era firme em invocar o nome de Deus. Muito dinheiro público, porque carroças e mais carroças de material de construção desceram à baixada, quando deviam se destinar a lugares menos particulares.

 

Por isso era difícil imaginar aproximação ou simples confluência de opiniões ou pensamentos. Coisas agarradas na memória dos coronéis.Ainda assim, acho que os coronéis resolveriam seu caso a contento, pois poder perdido é lâmina sob cujo fio ninguém quer passar. Muito menos coronéis, que sabem o que é viver à sombra dele e já sentiam o sol queimando-lhes a pele, cada um no seu tempo.

 

Difícil explicar para amigos e eleitores, uma aliança do filho sem mãe com o rezador e construtor. Mas a necessidade é mãe de acordos e de mudanças e D. Quitéria, mãe do Cel. Luiz, bem achou o Cel. Antonio Carlos bem simpático e solícito na última missa, onde Padre Ambrósio anunciou aos fiéis, não que Jesus tinha morrido, mas que eleições estavam próximas; era preciso pensar em quem votar e não cometer erros do passado.

 

Voltando aos coronéis, já que o Padre e a D. Quitéria fazem parte de outra história, fato é que coisas estranhas vinham acontecendo e um e outro coronel estavam inquietos, como se pulgas os incomodassem e os estivessem levando a mudar de posição.

 

Pois é, coronéis!

 

Deu-se que o atual intendente, inimigo de ambos, cismara de se aproximar de um outro intendente antigo, ambos coronéis e ambos inimigos (como tem coronel e inimigo na história!). Os coronéis da nossa história, os primeiros, que não são bestas, enxergam até em noite escura, desconfiaram, cada um no seu canto, que era preciso afastar mal-querências e partir para a formação de frente que pusesse fim à sem-vergonhice dos dois intendentezinhos de merda, que viviam (no passado) a se ofender, um chamando o outro de débil mental, o outro devolvendo a ofensa, chamando-o de bêbado. Coronéis são sábios, experiência de vida.

 

E aconteceu o impossível, mas inevitável. O Cel. Luiz, depois de muitos recados atravessados, código que só políticos maturados conhecem, foi à casa do Cel. Antonio Carlos (a tal mansão construída pelos contribuintes), não sem antes certificar-se de que ninguém o estava vigiando. Enfiou o Ford na estrada poeirenta e tratou de esconder ele embaixo de frondosa árvore, fora das vistas de quem passasse por ali.

 

Encontro tal, que não era para acontecer, não fosse a necessidade que já se falou lá atrás, não era de ir acontecendo assim, assim. Serviçais encaminharam o Cel. Luiz para a ampla sala do Cel. Antonio Carlos, enquanto este fazia preparativos finais para a conversa que não se sabia por onde começar, mas cujo fim era previsível.

 

Enquanto aguardava o momento do encontro, para traçarem rumos e conter aunião espúria dos intendentes, o Cel. Luiz ficou a correr os olhos pela sala, terminando por fixá-los nas paredes. Outra vez correndo vista, observou paredes descascadas e maltratadas (já ia tempo desde o término da construção), como viu certo despojamento e simplicidade na obra. Nenhum exagero ou modismo que valesse preço alto. Olhou o chão, madeira comum, que tanto poderia vir de matas vizinhas quanto de lugares mais distantes. Olhou a decoração - muita coisa do velho Cel. Antonio Carlos, o pai - que Deus o tenha - e de D. Mariquinha, tão cuidadosa com a antiga casa da fazenda do São Geraldo.Foi imerso nesses pensamentos que ele viu chegar, vindo do fundo do corredor que levava ao resto da casa, o Cel. Antonio Carlos.

 

Como previsto, ficaram sem palavras. Um e outro não sabiam iniciar diálogo para o qual nunca estiveram preparados, nunca quiseram, mas que agora foram empurrados a ele pela força irresistível da sobrevivência, que apaga mágoas e acalma dores. Ficariam assim toda a noite, não fosse a premência dos assuntos a tratar, o principal deles, cuidar de liquidar aqueles aprendizes de feiticeiros que, um e outro, um dia ambos - cada qual a seu tempo - colocaram na intendência e que agora queriam trocar os pés pelas mãos.

 

Passado o impasse inicial, foi o dono da casa que abriu a conversa, perguntando ao Cel. Luiz - delicadeza até de se estranhar:- "E como vai a senhora sua mãe, D. Quitéria?". Depois de dizer que ela ia muito bem e que mandara recomendações, inclusive ao Quinzinho, filho do Cel. Antonio Carlos (que, aliás, estava rondando uma neta dela, flor de menina), não se contentou o Cel. Luiz - numa das idas e vindas do "cunversê", não aguentou e disse mui compreensivo:- "Cel. Antonio Carlos, até que o senhor não deve ter gastado muito na mansão, como o povo anda dizendo e mal dizendo por aí!" - E fizeram um bom tempo de silêncio, até parecendo saboreando-o, pensou o Coronel Jesuíno... Ah, ia me esquecendo do Cel. Jesuíno, que estava lá no cantinho da sala e que viera acompanhando o Cel. Luiz ao encontro. Pois o Cel. Jesuíno, sem piscar, ruminando qualquer coisa, como era de costume, pensou quase em voz alta, lembrando inscrição que vira numa vila em praia próxima: - "O QUE É O MUNDO!?"

 

(O diabo dessa crônica, me dizem agora, já vai pra lá de 20 anos).

 

 


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