O olhar da inveja - Jornal Fato
Colunistas

O olhar da inveja


Gostava de contemplar a figura alheia. Suas vertentes, seus trejeitos, suas alegrias e seus sombreamentos eram prazeres amortecidos em seu coração sempre desavisado. Não era inveja pretendida, assim tramava. Achava bonito olhar o outro, ter o que admirar, mesmo que sua vivência se convertesse em tardes tediosas e noites mal adormecidas.

 

Era ameno aos seus olhos ter o que contemplar. Os frutos colhidos em vida não lhe garantiam apetite nem tão pouco seus temperos não lhe davam sabores apetitosos. Enfim, subsistia. Danava os seus sentimentos em porções de desassossego e dívidas alheias. Querer o que pertencia ao colocado como seu semelhante não era desejo construído, talvez, consequência de uma vida apagada ou subterfúgios não delineados.

 

Era demais para ela sobreviver e tão bonito, pensava, ver o outro com suas esferas nos olhos tão brilhantes. Tão lindo ver o sorriso saltando na boca, às vezes grande, largo, apetitoso ou de linha reta. Queria tanto o renascer para ela. Não desejava que o outro se afugentasse nem tão pouco se espalhasse em melancolias. Só queria observar, declamar para si que felicidade também existia, dava-se por aí, proclamava-se.

 

Nada era tão amargo quanto o cinza traçado dos dias, a poesia que dava murro na porta, o cenário idealizado, mas nunca tirado do papel, a vida desafiada nas inconstâncias e o mundo composto de uniformidades. Não queria extrair o que escorria do contentamento de terceiros e menosprezar esperanças dos homens. Porém, por que não podia se caber em si?

 

Acreditava, em momentos, que as extrações de sua infeliz existência foram deixadas por ai, entre amáveis e inimigos, entre as almas que tinham mais colorido. Não era inveja, mais uma vez cria. Era desafeto, efeito de injustiça, paz em desassossego, cascas demais. Sua insônia já tinha se tornado efeito disso, seus medos eram conversões de tudo que foi  inconquistável.

 

Nesses ambientes, estagnava-se. Perdia chão, nobreza, talento, palavras fantásticas, melodias, amores, fé, alegrias acrescidas de vida. Ela nada tinha por desejar intensamente. O outro se convertia em sua fuga diária. E não havia mais âncoras e mares. Não havia a observação da sua vida interna. Não havia graça em perceber-se em camadas. Já tinham depositadas cascas demais.

 

E dessas cascas não havia mais essência, tudo se cristalizou. O outro, não percebia, era mais uma parte que poderia ser ampliada em cada andança, olhar, preceito, poesia, imagem e possibilidade. Sua vida não era a sua, era a sede dos outros, o querer das vidas que nunca teve, todavia, que sonhava resgatar, drasticamente, dos que visitavam seus caminhos. Sua existência desenhava-se nas náuseas de uma vida tão mesquinha.

 

cheirosensaiosepoesia.blogspot.com.br


Comentários