Dois continhos de desamor - Jornal Fato
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Dois continhos de desamor


 

1) Espelho

_ Eu não confio mais em você.

Ela disse as palavras com calma e rancor, e, ao final da última sílaba pronunciada, a mágica teve início. Uma leve névoa encobriu o espelho diante dela, ocultando devagar sua imagem. No lado esquerdo, bem na quina superior, uma pequena rachadura começou a correr para o centro, encontrando outras fendas que surgiam por toda a superfície. Poucos segundos para o espelho se desintegrar, ensurdecedor, revelando por trás dele um rosto rude, incômodo olhar.

_ Não me reconhece?

_ Nunca te vi -  ela respondeu.

_ Pois sempre estive aqui.

Não demorou a  perceber que todos esses anos era sua própria imagem que enxergara .  Amara a si mesma, e era na placidez de suas próprias entranhas que encontrara repouso para a tormenta que teimava em transbordar de seus ouvidos e narinas. Era sua a pele que tocava quando a paixão lhe subia aos poros. E de sua anatomia misteriosa surgia o membro que dilacerava seu sexo  e todas as misérias do mundo.

_ E agora, quer que eu fique?

_ Não faz mais diferença.

Virou-se e, dois ou três passos depois, nenhum vestígio ficara daquele que nunca havia existido.

 

2) Noite típica

O vento forte e companheiro traz de longe um frio suave e o barulhinho bom do acordeom.   É mais uma noite típica de domingo na casa da praia.

O sanfoneiro está melancólico. Deve se lembrar de cenas antigas, paixões levianas e amores findos. Eu, que nem o conheço, imagino-o de frente para o fogão à lenha, olhar vidrado no fogo, sem ver as chamas nem ouvir o som que sai de seus dedos. Por cima das brasas, batatas doces postas com cuidado pela mãe de seus filhos.

Nada mais queima por lá. Há muito os corações de ambos deixaram de arder. Hoje, são como tumores endurecidos, intrincados nódulos que pesam dentro dos peitos, expandindo-se devagar pelas artérias, em direção ao ventre e pulmões.  Um dia, pelas pontas dos dedos dos pés e das mãos, vencerão os limites dos corpos e poderão, enfim,  declarar cumprida sua missão.

Por ora, alheio a sua própria dor, o sanfoneiro chora a morte do vaqueiro.


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