CINZAS                 - Jornal Fato
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CINZAS                


E o Carnaval acabou, deixando garrafas e copos meio vazios, espalhados pelo caminho; restos de confete e tiras de serpentina jogados pela casa, varanda e quintal; sobras de salgados e outras comidinhas sobre as mesas da cozinha e da copa. Roupas pessoais misturadas com toalhas ainda jazem emboladas sobre algum móvel, ou simplesmente atiradas ao piso do banheiro.

 

A geladeira está entreaberta; nas prateleiras, há umas poucas garrafas d'água pela metade, algumas já no fim; diversas latas de cerveja e umas tantas garrafas de vodca de origem duvidosa ainda fechadas, esperando por quem as bebesse. Espalhados pelos cômodos da casa, ainda dormindo o sono dos justos - ou o dos bêbados e boêmios - colombinas, arlequins e pierrôs; piratas, sheiks e odaliscas.

 

Hoje é Quarta-Feira de Cinzas e o sol já está alto, trazido pelo último bloco que passou há várias horas. E penduradas nos cabides dos armários ou dobradas em prateleiras e gavetas, lavadas, perfumadas e bem passadas, estão as nossas fantasias que serão usadas durante o resto do ano. São ternos, gravatas, camisas sociais e calças compridas; uniformes e fardas; dólmãs e jalecos; saias, blusas e vestidos. Da mesma forma, os sapatos bem comportados e engraxados, os scarpins e as sandálias de salto já estão à espera dos pés que serão conduzidos por eles aos escritórios, salas e cozinhas, aos pátios, consultórios e lojas.

 

E o quê deixamos para trás, após quatro dias, uma semana de reinado de Momo? A fantasia ou a realidade? O que restou do que se viveu nesses dias, somente ilusão ou a realização de um sonho? Quem viveu seu sonho, viveu; quem não o fez, já não poderá fazê-lo. Porque de agora em diante, até o final do ano, os bailes serão outros, os blocos e trios elétricos darão lugar a compromissos, reuniões e obrigações. Eles tocarão agora outros ritmos, outras músicas, que não soarão tão bem aos nossos ouvidos. Hora para chegar, para almoçar e ir para casa; casa para cuidar, família para tratar. Tarefas para cumprir, trabalhos para entregar, metas para bater.

 

Acabou nosso Carnaval, ninguém ouve cantar canções, ninguém passa mais brincando feliz. E nos corações saudades e cinzas foi o que restou. Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê, que nem se sorri, se beija e se abraça, e sai caminhando e cantando cantigas de amor. E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade. (Marcha de Quarta-Feira de Cinzas, Vinícius de Moraes e Carlos Lyra).

 

Sempre é preciso cantar, por mais tolo que possa parecer - a nós e aos que nos ouvem. É preciso cantar e também é preciso sonhar. Porque o canto nos alegra e afasta os males e receios que rondam nossos corações. E o sonho, ah, o sonho é o que faz o homem respirar e viver. Por mais inalcançável que possa parecer, o sonho é o que alimenta os nossos corações, é o que nos dá força e coragem para seguir em frente.


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