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O cheirinho atrativo do biscoito no forno ficará no passado. Nenhum outro será como o dela


Hoje o dia amanheceu cinzento. Sem os pontos perfeitos de ponto cruz e crochê e o cheiro delicioso dos doces de figo, mamão, laranja e outros caprichosamente feitos com zelo e carinho por Dona Maria. O cheirinho atrativo do biscoito no forno ficará no passado. Nenhum outro será como o dela.

Minha amiga de quase 80 anos, que aparecia para saber notícias minhas sempre que achava que estava sumida, e fez todo o meu enxoval e todos os presentes personalizados que queria dar, foi para o céu. Embora a morte seja um processo natural e doloroso, com ela vamos perdendo afetos e aprendendo a viver despedaçados, incompletos e com um rombo enorme no coração.

Sempre que queria presentes únicos, era a ela que recorria. O Miguel não terá o seu, caprichosamente marcado, porque não deu tempo. Era a querida das mãos de fada, que levou para o túmulo um talento tão grande que faz pena não ter mais acesso a tanta coisa linda.

Cozinhar sem a touquinha, nem pensar. A casa impecavelmente limpa, cada coisa no seu devido lugar, o cheirinho gostoso de casa da vovó, aliado às melhores lembranças. Já escrevi sobre ela. E só de lembrar já dá saudades.

Muito triste perder amigos. Principalmente aqueles que se importam com a gente e vão fazer toda a falta do mundo. A partida dessa querida vai para a lista das irreparáveis. O pior é não poder prestar minhas últimas homenagens a quem mereceu, a vida toda, o meu carinho e amor mais sinceros.  

Amizade realmente não é escolhida por faixa etária. Interessante isso. As verdadeiras amizades ultrapassam classe social, credo religioso, nível cultural e tantas outras coisas, mesmo em tempos de cultura de ódio. Elas resistem ao tempo, acalentam a alma e tornam a vida mais leve.

Quanto a mim, por tempos, restará contemplar as peças marcadas e de crochê que ainda tenho e matar um pouco da saudade. E lembrar que ninguém atravessa nosso caminho por acaso. Então cultivar amigos é como cuidar das plantas mais delicadas, que recebem adubo, água, luz e atenção na medida certas.

Quanto aos sabores, ficarão apenas nas lembranças. Nunca mais o doce cristalizado de mamão, de sidra, de banana, leite, coco, jaca ou figo. Os biscoitinhos de outras pessoas apenas me farão lembrar da amiga especial.

Se tem um conselho que posso dar aos amigos que me restam, é que se cuidem.  Não estou definitivamente preparada para perder os raros amigos que tenho. Pode parecer clichê, mas amizade é o nosso bem mais precioso.

Porque nos momentos mais difíceis, são esses amigos que enxugam nossas lágrimas, nos fazem sorrir e seguram a nossa mão para uma travessia segura. Você já está em paz, minha amiga. A nós resta a dor e a saudade. À família o meu afago mais carinhoso. Sabendo que a vida nunca mais será a mesma.


Anete Lacerda Jornalista

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