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Que o caos está instaurado no Brasil, todos sabemos


Que o caos está instaurado no Brasil, todos sabemos. Que a saúde enfrenta graves problemas também. Mas, não cansa de doer na alma quando a omissão, o descaso e o desinteresse daqueles que se comprometeram com o salvar vidas, permite o agravamento de doenças, levando ao risco de morte ou a esta, quando estes poderiam ser evitados com exames prévios.

É uma triste e cotidiana realidade a existência de filas, madrugada afora, para que o cidadão brasileiro consiga agendar uma consulta médica que, quando impõe a necessidade de certos exames ou procedimentos cirúrgicos, a espera pode demorar meses, anos ou toda a vida.

De tão grave o desrespeito à saúde pública que, no judiciário, chovem processos pleiteando exames, cirurgias, internações e o fornecimento de medicamentos. Apesar disso, por vezes, mesmo com ordem judicial, estes demoram ser entregues ao cidadão necessitado de urgência.

Assim, pessoas perdem a vida por falta de tratamento adequado. Alguns podem pensar: "mas, cada um tem sua hora, logo, quando ela chega, não tem jeito". Pode até ser que os dias de cada pessoa estejam escritos num livro da vida, mas a morte trazida pela violência ou pela omissão não se pode aceitar. Se tiver que chegar, que chegue naturalmente e após o uso de todos os recursos possíveis para ser evitada.

Na última semana, a mãe de uma grande amiga precisou passar por cirurgia de urgência e vivenciou uma situação de grave risco de morte. A causa foi uma crise de apendicite que estuporou dias antes do devido tratamento. Até aí, não há culpado! Trata-se de uma fatalidade da qual não temos como nos esquivar.

O drama surge quando se descobre que, por várias vezes, a brasileira buscou um hospital público com muita dor e, sem a feitura de qualquer exame, foi liberada, ainda com dores, para casa.

A dor permaneceu por dias até que, preocupados, apesar do diagnóstico médico, nada preocupante, a família, por si própria, decidiu pagar uma ultrassom. Contudo, de tão infecionado que estava o intestino, da ultrassom surgiu a emergência de um procedimento cirúrgico que precisou retirar vários pedaços desse órgão.

Um dia depois, a família foi informada de que seria necessária outra cirurgia com urgência por existirem necroses, mas que o quadro era muito grave para novo procedimento invasivo. Pessoas de muita fé que são, por coincidência ou não, a filha orou o terço sobre a infeção da mãe e a segunda cirurgia foi descartada no dia seguinte. A paciente teve alta, mas sua recuperação total, se ocorrer, não tem prazo definido. A previsão é que em 06 meses faça nova cirurgia para reposicionar o intestino no seu lugar.

Diante disso surge a pergunta: Se, na primeira consulta médica, exames básicos fossem requeridos, o dano seria tão grande? Por provável que não. Mas, ressalvadas as exceções, a dor alheia, nesse caso e em tantos outros, não se fez importante para os profissionais que promoveram as consultas iniciais. A dor alheia não motivou o preenchimento de uma simples folha de requisição de exame. A resposta foi: toma o remédio tal e vai para casa.

Agora, a paciente sofre dores insuportáveis, enfrenta o drama de se vê diante da morte. A família, por sua vez, sangra com o sofrimento de ver a dor, e o medo da perda, da genitora, da avó, ... E de quem é a culpa? Será do destino? Será do sistema que paga pouco aos médicos? Será da corrupção que deixa em decadência os hospitais? Será de Deus que quer o sofrimento de seus filhos? Por certo, a última pergunta não prospera.

Talvez os maiores culpados não sejam a maldade e/ou o desejo do mal alheio, mas o descaso com a dor do outro; talvez seja o trabalho diário por dinheiro, sem amor e sem o comprometimento com a cura e com a investigação das causas das dores alheias. Ou, talvez a culpa seja da rotina, que torna corriqueiro o contato com o sofrimento, de modo que este, quando no outro, passa a parecer menor que de fato é.

Mas, de que vale buscar respostas para o mal que já foi causado? Importante é a conscientização e a mudança de atitude para que outros males não sejam promovidos. Quem sabe se a sociedade, em todos os seus setores e profissões, substituir o descaso pelo zelo e a indiferença pela compaixão, dores como a da minha amiga e de sua amada mãe não seriam evitadas? Quem sabe essa mudança de comportamento, um dia, deixe de ser utopia e se torne uma bonita realidade... Quem sabe...


Katiuscia Marins Colunista/Jornal Fato Advogada e professora

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