Conversas de Supermercado - Jornal Fato
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Conversas de Supermercado

Já passei da idade de ficar dizendo idade que tenho, e não é pouca


Já passei da idade de ficar dizendo idade que tenho, e não é pouca. Esqueço detalhes até, o nome das pessoas, a feição delas, mas basta alguns segundos e algumas pistas para que me lembre de tudo, de quase tudo, de tudo o que interessa realmente.

Lembro-me, por exemplo, que aqui em casa quem faz compras de supermercados sou eu, sozinho, e isso vem desde quando eu tinha 18 anos, ainda em casa de meus pais. "Seo Mansur" me dava a lista de compra, algum dinheiro suficiente para não sobrar muito e nem faltar (ele tem descendência libanesa, de quem herdei) e me despachava para a venda (lembrei-me, naquele tempo não tinha Supermercado - era venda). Sempre segui a risca minhas obrigações, e com prazer, principalmente essa... outras também, mas isso é coisa de outra crônica.

Pois bem, sábado, 18 de agosto, parti eu com a lista de compras e três sacolas de pano firmes, para economizar plástico. Cheguei ao supermercado e comecei o trança-trança por entre prateleiras. Foi quando vi - poucas vezes vi isso - uns tomates muito bonitos e, sobre eles, placa delicada indicando ser produto de Cachoeiro, Sítio Mangueira, produtor o Sr. Carlos Crisostomo de Vargas. Gostei demais.

Segui viagem. Pela metade do supermercado, encontro uma mocinha e seu filho. Ela me vê e diz: - "Tá vendo esse tio aí, meu filho, foi ele quem me incentivou a ler. Íamos na casa dele e ele estava sempre lendo livros, jornais, até Cebolinha, revista em quadrinhos que comprava para meus primos e me incentivava a ler com eles".

Entendi nada, até que me achei e identifiquei a moça bonita - era minha sobrinha Elisa. Ela me apresentou ao filho, dando meu exemplo. Exemplo de tio, de leitor e de ensinador de leitura. Abracei eles e segui em frente. Esqueci o nome do filho.

Encontro um cidadão, em seguida; pelo olhar dele, pareceu que ele me conhecia. Posso não conhecer de imediato, mas o olhar das pessoas é definitivo para eu dizer se ele está alegre, e se eu o conheço, mesmo sendo esquecido. Estava certo, eu o conhecia. Ele tem os mesmos 70 anos que tenho; nos "lembramos" de episódios do idos de 1965 a 1968, quando atuávamos na Casa do Estudante de Cachoeiro, como "subversivos". Ele estava com um netinho, que deve estar rindo das "cunversa" dos vovôs, ele que vive nos tempos do facebook. Aliás, reconheci mais o amigo Geraldo Farias quando me lembrei que no face ele é o amigo Geraldo FariaJunior, assim mesmo, tudo junto. Não me lembrava de nada, até "ver" o nome dele junto, aí lembrei de tudo, inclusive que ele era irmão.

Pronto, acabou. Acabou dentro do supermercado. Já no estacionamento, um rapaz, acompanhado da namorada (ou será esposa?) passa por mim e - olhando para a ela diz - "Olha meu bem, eu tenho um livro dele, o "Retrato de um Ignorante", que meu finado pai me deu. Tem dedicatória e tudo. É muito bom, ele escreve muito bem". Aí chorei. Ele me disse o nome do pai, mas me esqueci, como esqueci de perguntar o nome da moça, mas o do jovem, anotei no papel assim que sentei no carro - Thiago Castilho. Demais pra mim num mesmo dia. Mas fazer o quê se a sorte nos favorece muito certos dias? Ah, as compras? Comprei tudo direitinho.

 

Raquel Lucas Salvador, Artesã

 

Raquel é essa mocinha aí da foto. Ela tem síndrome de Down, mas tem muito mais - tem talento incrível para o artesanato e o que está na foto junto com ela, é parcela mínima do seu talento.

Conheci-a como a maioria dos leitores está conhecendo agora, através da foto que transparece suas qualidades de artesã. Seu artesanato merece muita, muita atenção. Além de tudo o mais que vem ainda, ela é Cachoeirense sim senhora, sim senhor. Volto a falar dela.

 

O TERÇO

Christian Silva

Quando se está na chuva, seja pobre ou seja rico, ninguém quer se molhar. Ninguém quer saber de respeitar o antigo ditado, e não há quem possa mudar isso. Era o que eu tentava depois do trabalho, fugir da chuva.
Aquele aguaceiro imitava um dilúvio e só se via gente ensopada correndo e pulando daqui e dali as poças d'água. O jeito foi ficar no ponto de ônibus, estacado à espera de São Pedro resolver fechar as torneiras. Muita gente estava ali na mesma, e eu era apenas mais um.

Olhei para o chão e achei difícil crer. Aquilo que encontrei me foi algo inusitado. Homem de pouca fé que sou, o fato de dar de cara com um terço, ali no chão, não me era impressionante, mas me abaixo e pego o terço molhado, mesmo assim.

A senhora sentada no banco me sorri. - Hum, vai ter sorte hoje, pelo que vejo! - ela diz. Eu sorrio de volta, mas não posso concordar.

Talvez para qualquer outra pessoa o normal seria acreditar e até rezar o terço em algum momento. Eu só sacudo o objeto de leve, enxugo superficialmente na calça e o guardo no bolso esquerdo. A chuva que parecia não ver mais fim, passa.
No carro, meio molhado e com certa revolta, à cabeça me vêm as Ave-Marias que tanto minha mãe rezava todos os dias quando era pequeno. Ela nunca me obrigou a rezar junto, mas sei que isso lhe fazia falta, embora eu nunca tivesse dado importância.

Mal tinha entrado no carro e começado a dirigir, foi só olhar para o lado e praguejar ao notar o outro carro vindo e me acertando em cheio pela esquerda.

O motorista deu um pulo do carro. Tinha sido uma batida e tanto, mas eu também saio inteiro e venho para fora constatar os estragos.
- Tudo bem aí, cara?
- Sim, estamos inteiros.

Resolvo voltar para casa de ônibus, e de volta ao ponto, quando ia entrar, o trocador arregala os olhos:

- "Cuidado, moço!" - ele grita da janela do automóvel, alguém de rosto coberto vem depressa com uma faca grande feito essas de caçador, e me lança o golpe que decerto era mortal... e desaparece na calçada entre as tantas pessoas.

Mas a faca ficou-me do lado esquerdo, somente agarrada em minha camisa e eu não havia sofrido nem arranhão. Quando já estava perto de casa, alguma coisa me fez lembrar do Terço no bolso e do que aquela senhora sentada havia me dito.

Ainda na rua, minha esposa corre de encontro a mim.

Ela, chorosa, me diz que já tentara me ligar um milhão de vezes por conta de um sonho em que me via morto com um Terço na mão.

(Christian Silva é um jovem e talentoso novo cronista da cidade).

 

 

 


Higner Mansur Advogado, guardião da cultura cachoeirense e, atamente, vereador

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