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O corpo ainda molhado exala o cheiro gostoso do sabonete infantil que usa regularmente. A memória afetiva insiste em querer por perto os aromas da infância, e especialmente o primeiro banho do dia merece esse afago.

Já sabe que as lutas serão muitas. Que terá que matar vários leões por dia. Tem sido assim nos últimos muitos anos. Então boas lembranças, logo cedo, são bem-vindas e fazem bem ao espírito e ao coração. A sensação de alma lavada marca forte presença. Se por pouco ou muito tempo, só o futuro dirá.

Os pensamentos voam e trazem à memória o cheiro de terra molhada, as brincadeiras da infância, que nem parece tão distante assim, apesar das rugas provarem exatamente o contrário. Mas isso é um detalhe insignificante. O que são os sinais do tempo diante das memórias afetivas?

A impressão ainda é da pele de pêssego, salpicada de sardas no nariz, e a mecha de cabelo branco de nascença que despertava curiosidade. Por curto período, os problemas parecem suspensos e a água quentinha relaxa, conforta e acalenta. O cheirinho de bebê é companheiro em boa parte do dia.

Reenergiza. Traz alegria contida e discreta e a quase certeza de que tudo vai dar certo. Afinal, o que pode dar errado quando a criança renasce e floresce, com toda a sua força, num simples banho matinal. Naquele momento são lavados e levados ralo abaixo todas as culpas e pesos desnecessários.

De olhos fechados, viaja e sente a brisa suave e o cheiro da maresia, mesmo que esteja a quilômetros da praia. A imaginação fértil é de fato uma arma poderosa para trazer à tona momentos inesquecíveis. Relembra o emocionante e indescritível galope irresponsável no cavalo em pelo. Sentimento de liberdade incondicional.

A mesma criatividade e desprendimento de quem insiste em contar estrelas e vaga-lumes. Apontava as estrelas com medo das verrugas que poderiam aparecer na ponta dos dedos. Era o que dizia a crença popular. Mas era irresistível vislumbrá-las em tempos de pouca ou nenhuma luz artificial nas ruas. No campo ou na cidade, a falta de luz elétrica não dificultava nada, ao contrário permitia enxergar além e coloria a vida.

Quanto aos vaga-lumes, que bichinho interessante seria aquele, aparentemente tão frágil e leve, que iluminava caminhos, e ao contrário da constelação, estava ao alcance das mãos? Fascinante acompanhá-los e descobrir que a luz está em todo lugar, desde que saibamos percebê-la. Pura emoção e êxtase.

E pensar que um simples banho pode trazer tantas lembranças que pareciam definitivamente depositadas no sótão da primeira infância. Em que a energia era tamanha que a recomendação para andar devagar parecia comando contrário, e desencadeava uma corrida louca, muitas vezes para chegar a lugar nenhum.

Ou para alcançar o lugar das possibilidades, dos belos sonhos e companhias inesquecíveis, que resistem ao tempo e às intempéries da vida. Como diria Cecília Meirelles, "De que são feitos os dias? - De pequenos desejos, vagarosas saudades, silenciosas lembranças". E do cheirinho gostoso que invade a alma e provoca emoção e saudades.


Dayane Hemerly Repórter Jornal Fato

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